Resgate na biografia | Rod Stewart

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Rod Stewart praticando dois dos seus esportes prediletos

por Miguel Cordeiro

Esta será uma seção em que volta e meia falarei de certos personagens que a história empurrou para um lado não muito confortável na galeria do glorioso rock'n'roll. Não, não dê risada, estes caras já foram muito legais em um determinado período das suas ancestrais existências. Também saiba que isto vai acontecer com muita gente que hoje está por cima da carne seca, com o agravante que em nossos dias o tempo de validade é muito mais curto do que antes.
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Rod Stewart

Este escocês biriteiro, jogador de futebol, tirado a mod e que dizia ter trabalhado como coveiro perambulava por Londres cantando em grupos variados até entrar ao lado de Ron Wood no Jeff Beck Group, e, em 1968, gravaram um grande álbum chamado Truth. Ainda lançaram um segundo disco, Beck Ola, porém choques de ego interromperam o projeto e Rod & Ron se juntaram ao Small Faces (após a saída de Steve Marriot) e a banda passou a se chamar apenas Faces. Quase ao mesmo tempo Rod Stewart assinou contrato como artista solo em outra gravadora mas manteve também a carreira paralela como vocalista do Faces.

Mesmo apresentando bons discos com a banda, a trajetória individual de Rod começou a ter mais visibilidade por conta dos excelentes álbuns solo que lançava. Sua voz rouca perfeitamente talhada para o rock'n'roll à base de muito uísque encantava a todos e logo passou a ser considerado um dos melhores vocalistas do gênero. Seus discos apresentavam uma bem dosada mistura de rock básico, rhythm'n'blues, folk, pequenas pitadas de hard rock, mas acima de tudo muito rock'n'roll.

Cantava magistralmente outros autores como Dylan, Tim Hardin, Lennon, Hendrix, Sam Cooke (sua maior influencia) e entre 1969 e 1972 lançou na seqüência quatro discaços: An old raincoat won't let you down (1969), Gasoline Alley (1970), Every picture tells a story (1971) e Never a dull moment (1972) cheios de canções marcantes como Maggie May, Mandolin Wind, Reason to believe (Hardin), You wear it well, Girl from north country (Dylan), Twistin' the night away (Cooke), Lost Paraguayos etc etc etc.

Estava na cara que conciliar a carreira solo com a carreira como crooner do Faces não ia dar muito certo e as pressões decorrentes deste jogo duplo fizeram o Faces terminar. Em 1975, Ron Wood foi tocar com os Rolling Stones no lugar de Mick Taylor. Rod Stewart foi viver na América, virou uma superestrela, se tornou um bom vivant, e, mulherengo inveterado papou várias atrizes deslumbrantes de Hollywood e modelos gostosíssimas. O Faces, cambaleante, ainda tentou algumas manobras, em vão.

Rod Stewart ainda lançou um disco ok, Atlantic Crossing, o primeiro desta nova fase, já deixando de lado aquela sonoridade de antes em troca de um acento mais pop e no decorrer dos anos foi apresentando trabalhos burocráticos e sem criatividade. Zilionário do jet set se transformou num dos alvos preferidos da geração punk por representar tudo aquilo que não prestava no rock daquela época. Freqüentou muito o Brasil no final dos anos 1970, promovendo farras homéricas, destruindo quartos de hotéis cinco estrelas jogando pelada, roubou uma música de Jorge Ben e participou do primeiro Rock in Rio com uma primorosa apresentação. Hoje faz carreira de sucesso lançando discos como intérprete do cancioneiro de jazz norte americano dos anos 30 e anos 40. No entanto nada se compara aqueles seus primeiros trabalhos, e as novas gerações que já o conheceram como um artista não muito inspirado não fazem a mínima idéia da importancia de Rod The Mod Stewart para a história do rock'n'roll.

Follows the white rabbit

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Mr.Bowie, há quarenta anos mostrando o caminho


por M. Rodrigues

Imagem, embalagem, moda, pose. Essas são algumas das palavras que, volta e meia, são utilizadas no meio do rock'n'roll para se tentar desqualificar uma banda. Afinal, banda que é banda se apresenta de qualquer jeito; o importante é a música, não é isso?

Não, não é bem assim. Existem coisas mais complexas do que a nossas vãs tentativas de enxergar o mundo de forma dicotômica e confortável; branco e preto, certo e errado, bonito e feio, conteúdo e embalagem, Belle & Sebastian e Placebo.

Pra começo de conversa é preciso fazer uma distinção sobre o conceito de imagem. Imagem é o que se tem por representação física de alguma coisa (imagens visuais); mas não só. É também a construção social que se faz de uma pessoa, uma instituição ou mesmo uma banda de rock. Quando então passa a se falar em imagem pública. Bono Vox e os direitos humanos; Chorão e a bestialidade humana; Fred 04 e a nova esquerda.

Essas imagens públicas como construções sociais, podem ser conscientes, e aí temos os trabalhos de marketing; ou inconscientes, que se constroem na somatória de atitudes, visuais, correlações e filiações a este ou aquele pensamento. Nenhuma das duas formas, no entanto, é superior ou inferior à outra.

Do topete e rebolado de Elvis, passando pelos terninhos Yves Saint-Laurent e o bom mocismo inicial dos Beatles, pelas maquiagens e distanciamento do glam rock, pelos jeans rasgados e palavrões dos punks, até a caretice barbuda e o desleixo do figurino dos Loser Manos, imagens públicas foram sendo montadas e agregaram algum valor à música. A relação é complementar e não antagônica.

Enganam-se redondamente aqueles que pensam que bandas como Radiohead, REM, Legião Urbana, Pixies e outras consideradas pelos seus fãs como bandas 'honestas', sem pose, blá blá blá, não pensam ou pensaram de forma consciente a sua imagem. Esta é uma seara onde não se tem escolha; o simples optar por não se importar com isso já marca uma filiação; "é absurdo imaginar que a verdade consiste na opção, quando toda tomada de posição equivale a um desprezo pela verdade" (Cioran).

Chegando a este ponto, é importante frisar que não é a falta de opção, pelo ato de ter que escolher um lado para ficar, que nivela as bandas de rock'n'roll. Nem uma banda 'honesta' faz necessariamente um som 'honesto', nem uma banda 'fashion' faz necessariamente um som fake. Aqui entram outras variáveis mais sutis.

Pegue-se a 'moda', por exemplo, como umas dessas variáveis. Ora, não podendo deixar de citar nossa provinciana Salvador, note-se que por aqui, no meio rock'n'roll, a simples pronúncia da palavra 'moda' causa incômodos e urticárias em muita gente. Confunde-se moda com modismo. Mas não só. Associa-se moda à frivolidade, como se uma banda que estivesse na moda (sonora, de vestiário etc) fosse necessariamente uma banda sem consistência.

Esse tipo de preconceito acaba por gerar uma cena extremamente conservadora, sem fantasias, sem seduções, sem novos ares e que acaba por não entender a importância do efêmero nesse meio. Desmonta-se assim parte do circo do rock'n'roll e deixa por ai muito roqueiro com cara de corretor de imóveis. Aplaude-se quando bandas de fora se permitem a marcar presença com atitudes diferenciadas, mesmo quando em shows por aqui; no entanto, o máximo que permitem a si mesmo é vestir a velha calça jeans com uma camiseta preta. O uniforme de roqueiro soteropolitano. Da mesma forma, em geral, as atitudes são contidas, as palavras mesuradas e o som pouco criativo. Imagem e 'conteúdo' em perfeita sintonia.

Uma cena rocker se faz com boas bandas, infraestrutura, mídia e, sim, também com a construção de imagens públicas. É assim em Manchester, em Seattle, em New York, em Porto Alegre, em Curitiba. Já é hora de perder a ingenuidade.

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trilha incidental: Virginia Plain, Roxy Music.

Smetak e o Rock'n'Roll

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por Miguel Cordeiro


Walter Smetak, professor da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia era uma espécie de John Cage tupiniquim que desenvolvia teorias musicais totalmente fora dos padrões estabelecidos e vivia criando instrumentos inusitados e absurdos. Dono de uma habilidade manual incomum, era capaz de construir um negócio metade violão metade panela de cozinhar e o produto final além de instrumento musical, poderia ser também uma escultura ou objeto artístico, o que demonstrava a sua aguçada percepção plástica.

Suíço de nascimento e baiano por prestação de serviços, Smetak era um artista nato, se tornou uma lenda em seu próprio tempo e seu nome atravessou as fronteiras. Vivia enfurnado em sua sala-oficina na Escola de Música e como uma espécie de Professor Pardal, estava sempre maquinando suas criações originalíssimas.

Smetak também se tornou uma lenda devido a sua própria figura física e enigmática, um cara que sempre destoava dos demais em qualquer lugar que estivesse. Forte, cabelereira lisa cheia e prateada, penteada para trás, traços faciais marcantes, quase sempre vestido de preto, óculos escuros fechadão e se locomovia pela cidade pilotando uma vistosa motocicleta preta da época da segunda guerra. Descontando os cabelos grisalhos, parecia um beatnik ou um daqueles caras da turma de motoqueiros de Marlon Brando no filme O Selvagem ou então do filme Easy Rider.

Deste modo, ele se tornou mais uma daquelas figuras folclóricas da Salvador de então e quando ele surgia naquela moto, todos o identificavam, muito embora a maioria da população nem desconfiasse que aquele era o genial Walter Smetak.

Bem no início dos anos 80, Smetak continuava igual, a mesma cabeleira cheia, agora mais curta e espetada, os óculos e as roupas escuras, a moto preta. Na época, eu e Marcelo Nova nos encontrávamos quase diariamente. Eu fazia os grafites do Faustino, o Camisa de Vênus já existia e a gente rodava pela cidade bolando estratégias, discutindo música, azarando as garotas, fazendo brainstorms e nessas voltas era comum ver Smetak e sua moto nos lugares mais inesperados. No tráfego da Avenida Sete, em Itapuã, no Canela, no Barbalho, na Ribeira e quando isso se tornou uma coisa rotineira, era sempre uma algazarra no carro.

- Olha lá o Smetak! Que figura rock´n´roll da porra!

A gente sabia que o cara era meio gênio e todo gênio é meio chato e imaginava que o cara não devia ter muita simpatia pelo rock, mas a nossa curiosidade sempre aumentava.

- O que ele pensa sobre o rock´n´ roll?

Os encontros surpresa ficaram cada vez mais constantes e um dia gritamos do carro.

- Diga aí, Smetak!

Ele acenou. Da outra vez mais uma saudação e ele retribuiu com uma buzinada. Até que numa tarde na sinaleira do Porto da Barra a moto preta de Smetak pára ao nosso lado. Ele nos reconhece, faz um sinal com a mão e de imediato eu lhe pergunto:

- Mestre Smetak, o que você acha do rock´n´roll?

Surpreso com a pergunta nos olhou com determinação e disparou sem pestanejar.

- Rock´n´roll é lixo!!

Eu e Marcelo começamos a gargalhar, repetindo mecanicamente o que ele havia dito.

- Rock´n´roll é lixo, do caralho, rock´n´roll é lixo!

E a gente concordava com a sua definição porque ele estava certíssimo. Rock´n´roll como definição de lixo, trash, é perfeito. Smetak inicialmente estranhou nossa reação, mas logo sacou a ironia das gargalhadas, deu um sorriso cúmplice percebendo que a gente estava curtindo com a cara dele e com toda aquela situação. Aí o sinal abriu, ele deu umas três sopradas potentes no acelerador da moto e saiu em alta disparada ziguezagueando na pista, a cabeleira espetada e prateada reluzindo ao sol e sumiu entre os carros.

Teóricos, acadêmicos, pesquisadores e intelectuais tradicionais geralmente não gostam de rock´n´roll. Smetak também era assim, mas ao contrário da maioria dos seus colegas, com certeza sabia o significado dele.

Ocean Colour Scene, the day we caught the train

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por M. Rodrigues

A década de noventa, como todo 'fin-de-siécle', foi um tanto quanto conturbada. Começou com a queda do muro de Berlim e terminou deixando as incertezas políticas para o novo século. No terreno do rock'n'roll não foi diferente.

Dos acordes Sabbathianos de Seattle, passando pelos crossovers de funk, metal e punk da Califórnia e chegando até a profusão de bandas 'indies' que não sabiam se queriam ser Pixies, Jesus and Mary Chain ou Sonic Youth, os noventa avançaram no embate com regionalismos, eletrônica e muita, muita caretice. Honrosas exceções à parte, é claro.

Por aqui virou lei cair no discurso fácil do 'pra ser global tem que ser local'. E assim, numa quase unanimidade, 1993 viu pipocar de norte a sul do Brasil um monte de bandas, que em busca de achar saídas para o lugar comum da globalização, correu atrás da sua 'identidade'. Mesmo que pra isso fosse necessário inventá-la.

Não mais que de repente fazer 'só' rock'n'roll era um equívoco. O negócio era misturar caxinguelê com guitarra distorcida, carimbó com tatuagens, maracatu com drum machines e samba-de-roda com scratchs e cara de mal. Samba do branco doido, devidamente embalado para os festivais de Montreaux da vida, que ainda ecoam nos Casarões da parte baixa da cidade da Bahia. Nunca fomos tão brasileiros.

A Inglaterra, blasé como sempre, recusou a moeda da Comunidade Européia e a culpa pequeno-burguesa do mundo civilizado. Passou pela eletrônica com a altivez da realeza e de quem já havia elaborado tudo no 'Hacienda', em Manchester desde as batidas perfeitas (acorda D2!) de 'Blue Monday', do New Order. Massive Attack, Portishead, Morcheeba, Tricky. Melancolia, musicalidade e sofisticação no Trip Hop e no Acid Jazz. O olhar pra frente de quem é MODerno e ainda pode dançar. Happy Mondays, Stone Roses e Primal Scream.

Enquanto o resto do mundo agredia os tímpanos com hiphop padrão MTV e noise vazio, algumas bandas inglesas pegavam o trem rumo ao lugar ainda inesgotado das melodias e voltavam a mostrar sentido onde os arautos do caos improdutivo tentavam enterrar a música pop e, sobretudo, o rock'n'roll. Dessa diversidade, catalogada no elástico rótulo da 'britpop', sobressai a brisa revigorante do Ocean Colour Scene.

O OCS, da cidade de Birmingham, é uma banda de músicos talentosos; o que, em Soterópolis, nos dias que correm, conta pontos contra (sic). Steve Cradock (guitarra, teclados), Simon Fowler (voz, guitarra, harmonica), Damon Minchella (baixo) e Oscar Harrison (bateria); uma banda de verdade. Além de serem também compositores inspirados, calcados na linha do modern rock inglês; Small Faces, Kinks, Beatles (fase Rubber Soul), Who, The Jam, Stone Roses.

Começaram, por volta de 93, como banda de apoio do 'modfather' Paul Weller e logo depois estavam abrindo a tournée de 94 do Oasis, por convite do próprio Noel Gallagher que, no melhor humor inglês, elogiava a banda dizendo que o OCS era "a segunda melhor banda britânica". Weller também participou das gravações do álbum Moseley Shoals, tocando órgão, piano, guitarra e fazendo backing vocals.

É fato que a tour com o Oasis e as declarações dos irmãos Gallagher ajudaram a alavancar o conhecimento sobre o OCS nas ilhas britânicas. O mesmo já não pode ser dito da popularidade do grupo fora da Inglaterra. O Ocean Colour Scene ficou obscurecido numa época de boys bands e outras crias dos laboratórios da indústria fonográfica. O som, no entanto, ganhou com isso. Uma série de álbuns vigorosos, feitos de carne e sangue, alheios às tendências bárbaras, foram permeando a carreira da banda. Canções em que nos pegamos, sem querer, cantarolando pelas ruas. Uma sensação boa, de um mundo com possibilidades, de felicidade nas coisas pequenas e imprescindíveis; "you and i should ride the coast / and wind up in our favourite coats just miles away / roll a number write another song / like Jimmy heard the day he caught the train.

Em pouco mais de uma década de carreira, o OCS já fez cerca de onze álbuns, contando coletâneas e gravações ao vivo. O último a sair, o novíssimo A Hyperactive Workout for the Flying Squad, mostra que a 'pegada' da banda continua segura. Ouça 'Start of Day', 'Drive away' ou 'Free my name'. Ou ainda 'My Time', onde a veia soul - um dos pilares do som Mod - sobressai, e te deixa bastante triste se não tiver alguém especial ao lado pra dançar juntinho. Está tudo ali. Acordes mágicos em timbres que só uma Rickenbacker tem; o vocal rasgado e preciso; melodias que celebram o fato de estarmos vivos; rock'n'roll como deve ser. Uma vontade enorme de seguir em frente. Pegando o trem certo da história, é claro.

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Discografia recomendada: Moseley Shoals (1996), Marchin´already (1997), Songs from the front row - coletânea (2001), North Atlantic Drift (2003), A hyperactive workout for the flying squad (2005).

After all this, won't you give me a smile?

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Townshend em ação, em 1964.

por M. Rodrigues

Felizmente o rock'n'roll não é o território privilegiado da 'eterna criança', embora muitos pensem o contrário. Também não é a trincheira avançada da bravata movida a testosterona e overdoses.

Embora contemple no seu leque generoso, boa parte das almas incapazes de lidar minimamente com as agruras do dia-a-dia, o bom rock'n'roll (procure por ai, ele existe) continua sendo sedutor, perigoso e tendo vida inteligente, desde que The Doors pisaram pela primeira vez num palco da costa leste americana.

É verdade que por aqui tem estado tudo mais difícil. Luz demais, 'transparence' demais, politicamente corretos demais, fragmentos demais e cegueira em excesso. Odes à pobreza (em todos os sentidos), à ignorância, a deselegância, à vulgaridade, à burrice, passaram a ser moedas-corrente. Diferença passou a ser palavrão, autoria virou terra-de-ninguém e 'gosto não se discute', o chavão na boca dos medíocres.

Além do mais, questões básicas: alguém precisa, urgentemente, contar por ai que pra tocar música de três acordes é preciso aprender mais do que três acordes. Que cara feia pode ser sintoma de fome; que piada contada duas vezes perde a graça; que os Red Hot Chili Peppers surgiram na década de oitenta (1983, pra ser mais exato) e que Pete Townshend quebrou a primeira guitarra, há mais de quarenta anos, por puro acidente.

Mas já é tempo. A roda gira, o Yin desce e o Yang sobe. A beleza será devolvida. Tirem as vendas dos olhos e larguem as muletas confortáveis. Hora de andar com as próprias pernas. Hora de se divertir de verdade. Chega de ser fake; o rock'n'roll tem seus próprios estatutos e senhas. Decifre-as ou seja devorado. Disneylândia fecha esta noite.
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ps. Permitam-me mais uma coisa; ouçam correndo o Ocean Colour Scene. Podem começar com o Moseley Shoals. Pra que tem uma conta UOL dá pra ouvir em streaming os discos Songs From the Row (best of) e Marchin' Already.

Exílio na Rua Principal

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Roger e o seu Ultraje a Rigor


Por Miguel Cordeiro

Antes dos anos 80 o rock brasileiro carecia de algo imprescindível para sua estabilização definitiva como uma manifestação também nacional: a palavra, a poesia genuinamente rock´n´roll. Isto só era percebido com nitidez na obra de Raul Seixas ou com Mutantes e Rita Lee dos primeiros discos.

Aí chegaram os anos 80 como um tsunami no marasmo cultural de então. A ditadura militar cambaleava e foram percebidos sinais de novos tempos a chegar. Já por volta de 1982 podia-se observar pelo Brasil uma juventude produzindo e consumindo cultura rock sem as amarras de um nacionalismo exacerbado. Mas, talvez, o símbolo da confirmação deste movimento seja uma música que tomou de assalto o país inteiro. Trata-se de Inútil do grupo paulista Ultraje a Rigor; aquela com o refrão matador, ¨a gente somos inútil¨. Virou uma espécie de hino nacional e até opositores ao regime militar a usaram para achincalhar o governo.

A canção popular de protesto, tradição da música brasileira e que teve seu apogeu na época dos festivais dos anos 60, tinha agora uma outra cara. Não mais aquelas mal humoradas músicas cantadas em ritmo de bossa nova ou samba canção. O rock´n´roll arrombava as portas da carrancuda MPB com irreverência, picardia e muita história interessante para ser contada. A partir daí o rock brasileiro se tornou mania nacional e é quase certo que os anos 80 tenham sido uma época em que as pessoas gostavam tanto (ou mais) do rock nacional quanto do rock gringo.

Finalmente a tal poesia rock´n´roll (métrica, temática) tinha se adaptado à língua portuguesa. Se antes o rock no Brasil tinha pouquíssimos representantes, agora existia uma enorme variedade de compositores que sabiam se expressar e se comunicar com habilidade. E, na tora e no talento delimitaram um território próprio do rock, estabelecendo um saudável confronto (algumas vezes até violento) com outras manifestações. O público retribuía lotando shows e comprando discos, e assim o rock deixou de ser uma coisa de gueto para se transformar num fenômeno popular.

O bacana é que na esteira do rock outras coisas também vieram juntas. E nos anos 80 se falou muito em arte marginal, Antonin Artaud, arte Dada, George Orwell, Henry Miller, grafites, Luis Buñuel, fanzines, anarquismo cultural, Jorge Luis Borges, rádios rock e rádios piratas, Aldous Huxley, manifestos modernistas, Fellini e, sobretudo, literatura beat que é o berço literário do rock´n´roll, até então quase inédita editorialmente no Brasil. Foram despejados no mercado livros de William Burroughs, Allen Ginsberg, Jack Kerouac, Sam Shepard, Bukowski, Ferlinghetti, Timothy Leary, Gregory Corso, Ken Kesey, Neil Casady, etc etc.. Revistas em quadrinhos como Chiclete com Banana de Angeli, a revista de Glauco, diversas publicações sobre rock, o jornal Planeta Diário, edições em livro dos Freak Brothers, a revista Animal já no finalzinho dos 80 com o melhor dos quadrinhos underground da época.

O tempo voa, já se vão vinte anos e hoje com todos os avanços que temos, a velocidade da informação, a Internet, MTV, as novas tecnologias, a liberdade de expressão mas para os rockers brasileiros que gostam de cultura, nada se compara ao que aconteceu nos anos 80, e observando os dias atuais é fácil concluir que não estamos num bom momento. O rock deixou de ser um fenômeno popular, voltou para o gueto.

Ideologia, eu quero uma pra viver - dizia Cazuza, integrante do mainstream. Hoje temos no mainstream DJs blasé de eletrobossa que se acham híbridos perfeitos de Stockhausen e Tom Jobim, temos a baba emo-core e o hardcore melódico, ou melhor, meloso, temos a mistureba musical criada pelos grupos nordestinos - o rock taboca ou rock Sarney, que agrada em cheio as ¨fundações culturais¨ de regiões onde a plenitude cultural e democrática ainda está longe de ser alcançada. Temos a praga da desinformação e do "politicamente correto" que às vezes até leva o pessoal do rock a elogiar músicos do sertanejo, axé e pagode. E nas livrarias temos José Saramago e o Código da Vinci.

Mas se por acaso você estiver passando pela rua principal e souber da existência de um túnel do tempo que possa te transportar para os anos 80, pode entrar sem medo. Vá até lá e aproveite.