Still in Love

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The Stills, renovando os anos 80.


por Marcos Rodrigues

We were lovers / We were kissers / We were holders of hand / We were make-believers / Just losing time (...).

Passeios de mãos dadas nos parques da fria Montreal, mesmo que num dia ensolarado; corações partidos, desilusões, melancolia, tardes bêbadas de domingos, um certo medo do amadurecimento, 'friends getting old', 'changes are no good'. É nesse universo de entrega sentimental, terreno pantanoso onde muitos derrapam, que a voz melodiosa e a guitarra delicada de Tim Fletcher vai conduzindo a música do The Stills com segurança.

Esse quarteto canadense, que conta ainda com o baterista Dave Hamelin, o guitarrista Greg Paquet e o baixista Oliver Crowe, apareceu para o mundo no final de 2003 com um disco despretensioso e que agora, em 2005, já é absolutamente imperdível. Logic Will Break Your Heart chegou meio obscurecido na nova cena de New York, cidade onde os caras resolveram desembarcar, mas logo foram notados pelo Interpol, com quem fizeram alguns shows e de quem receberam elogios rasgados.

O som, que já andaram classificando, nas colunas online da vida, de britpop além de outros equívocos, passeia à vontade sobre o leque de referências do pós-punk e da própria vanguarda novaiorquina. Anos 80 revisitados sim, mas atualizados com propriedade. Linhas de baixo musculosas e econômicas, um baterista seguro e que sabe usar os tambores, e guitarras bêbadas de chorus e overdrives em dedilhados insistentes, simples e mágicos. Tudo isso para nos apresentar uma sequência de belas canções, hits quase instantâneos. O disco, o primeiro e único do The Stills até aqui, mais parece um 'best of' de tantos acertos.

Muito pouco conhecida por aqui, a banda estourou na Inglaterra em 2004, ficando nas listas dos mais vendidos, além de encabeçarem por semanas a parada independente inglesa. Músicas como Lola Stars and Stripes e Still In Love Song continuam levantando as pistas de dança pelo mundo e deixando em muita gente aquele sorriso de satisfação por ouvir algo que realmente vale a pena.

No momento a banda está de volta à Montreal e prepara o próximo trabalho. Tarefa nada fácil deve estar sendo conceber o sucessor desse Logic Will Break Your Heart. Pelas prévias que estão rodando pela net, a banda parece ter fôlego. I'll see you in a second / A dirty little minute / That was an hour ago / Don't censor me / So bitterly / There´s no change / The sun goes down / I'm ready for it. Aguardemos.

Quem tem medo de Timothy Leary?

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Leary e sua esposa Rosemary, 1968.


por Miguel cordeiro

Se ligar, se sintonizar e cair fora. Este foi o mais famoso dos seus lemas e poucas pessoas foram tão cruciais para a cultura contemporânea quanto o norte americano Timothy Leary. O que este cara fez durante a sua existência não está no gibi. Para se ter uma idéia o presidente americano Richard Nixon, político reacionário, senhor da guerra do Vietnam e artífice da espionagem e grampos de Watergate certa feita declarou que Timothy Leary era 'o homem mais perigoso do mundo'.

Psicólogo e professor da Universidade de Harvard, liderou um grupo de pesquisas sobre os efeitos causados pelas drogas psicoativas, experimentando várias substancias até chegar ao poderoso LSD (criado em 1938 pelo suíço Albert Hoffman), e quando Dr. Leary pingou algumas gotinhas dele em sua própria língua, o mundo mudou para sempre. A partir daí, Leary virou uma figura emblemática passando a conviver com cientistas, atraindo personalidades como Aldous Huxley (que se tornou um grande amigo), escritores beats, artistas da contracultura, gente do cinema, músicos do jazz e do rock. Virou o guru da malucada e, lógico, foi expulso de Harvard.

Sem vínculos oficiais mergulhou fundo na agitação dos anos 60. Falava abertamente sobre a experiência do LSD, organizou sessões psicodélicas nos parques de São Francisco da Califórnia ao lado de Ken Kesey e ao som do Grateful Dead e logo logo era o cara mais influente entre os que influenciavam. Aprontou tanto que as coisas começaram a complicar para o seu lado e terminou indiciado por ser pego com uma pequena quantidade de marijuana.

Em 1969 decidiu se candidatar a governador da Califórnia com o apoio da malucada e a campanha financiada por roqueiros famosos. O próprio John Lennon confirmou que Come Together dos Beatles foi composta originalmente por ele para ser jingle da candidatura. A investida de Leary na política foi a gota dágua para a moral conservadora americana. Terminou condenado por aquele processo por porte de drogas e foi encaminhado para o xilindró no inicio de 1970. A pena: 30 anos.

Nove meses depois, com a ajuda dos amigos e apoio logístico do grupo guerrilheiro Weathermen Underground, fugiu espetacularmente da cadeia para o exílio e sua escapada cinematográfica provocou a ira das autoridades por ridicularizar a eficiência carcerária norteamericana. Foi caçado em todos os lugares enquanto pulava de um país para outro, mas num vacilo, em 1973, fez a asneira de ir para o Afeganistão e caiu numa armadilha da Interpol, do FBI e da CIA.

De volta aos Estados Unidos amargou três anos de cadeia, sendo transferido constantemente de uma prisão de segurança máxima para outra, às vezes com o nome trocado pelas autoridades. Foi interrogado, ameaçado de diversas formas, colocado para ser vizinho de cela do assassino macabro Charles Manson, até que foi libertado em 1976, o que levou a proliferação de boatos de que havia colaborado com a CIA e dedurado antigos companheiros em troca da liberdade. A verdade é que o caso é meio nebuloso. Leary teria falado para as autoridades sobre os Weathermen Underground, mas, em se tratando do 'homem mais perigoso do mundo', um cara odiado tanto pela direita conservadora por ser uma ameaça a moral e aos bons costumes como pela esquerda autoritária que o acusava de alienar a juventude através das drogas, não é de estranhar que seria difamado pelo resto da sua vida.

Uma vez em liberdade, Leary estabeleceu-se na Califórnia, voltou a ser uma celebridade, fez palestras, escreveu artigos e roteiros, enveredou pelo mundo dos computadores e lançou em 1986 uma sensacional autobiografia, Flashbacks, onde ele narra com detalhes a sua trajetória.

No inicio dos anos 90 foi diagnosticado com câncer, mas não esmoreceu. Utilizou a doença a seu próprio favor dizendo sentir-se excitado com a proximidade do fim da vida. Falou em transmitir sua morte on line e resolveu ser congelado após o óbito mas desistiu pouco antes de morrer afirmando ter tido uma visão em que acordava algumas décadas adiante totalmente desesperado por estar cercado de cientistas sisudos fazendo anotações em pranchetas.

Nos seus últimos dias vivia festejado pelos amigos, admiradores, repórteres e costumava passear pelas avenidas das praias do sul da Califórnia a bordo de carros rabo-de-peixe sem capota ao lado de garotas de topless. Promoveu um jantar de despedida no palco de uma casa noturna simulando um cenário igual ao do quadro A Última Ceia de Leonardo Da Vinci. E ainda gravou um excelente CD - Right to fly, com o mais puro rock´n´roll onde canta e se despede da vida. Timothy Leary, o Papa da Contracultura, morreu em 31 de maio de 1996, foi cremado e suas cinzas, transportadas num foguete da Nasa, foram espalhadas no espaço sideral.

P. S.
Para conhecer melhor a vida deste fantástico personagem leia a autobiografia Flashbacks, veja o filme Flashbacks (com Denis Hopper e Kieffer Sutherland) e consiga o CD Right to fly.

Placebo City Rockers!

foto Thiago Fernandes

O performático Stefan Olsdal

17 de abril de 2005. Momento histórico para a cena rock'n'roll de Salvador. Só tenho a agradecer a possibilidade de ter estado, com a Theatro de Séraphin, no mesmo palco de uma das grandes bandas do momento, o Placebo, que fez um show impecável, selvagem e generoso. Com um dia mágico e um fim de noite surreal, numa festinha no Miss Modular com a participação da banda. Muito bom. Deixem seus comentários; isto aqui é uma resenha coletiva e aberta.

Marcos

Placebo | Salvador 17.04.2005

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por Marcos Rodrigues

Placebo tocando em Salvador é quase um sonho. Não porque a banda seja a quintessência do rock'n'roll atual, mas porque Salvador tão depauperada culturalmente, tão folclorizada nas últimas décadas, vai ter um show internacional de uma grande banda. Já tivemos por aqui Nina Hagen, Information Society, A-Ha, Nazareth, todos em fase decadente. No próximo domingo, no entanto, no palco da Concha Acústica do TCA, às 17h, precedidos por cinco bandas de Salvador, aporta o rock de uma banda inglesa, no seu auge.

A banda do andrógino Brian Molko é uma ave rara no atual cenário de rock'n'roll no mundo isolada que está, sonoramente falando, de outras bandas contemporâneas. Com uma formação bastante cosmopolita, o grupo que além de Molko, guitarra e vocal (nascido Belga, crescido no Líbano e Luxemburgo) tem também o exótico baixista sueco Stefan Olsdal e o baterista inglês Steve Hewitt. Os caras viviam rodando a Europa entre cursos de interpretação teatral, guitarra e formação básica. Molko e Olsdam se conheceram num colégio em Luxemburgo e se reencontraram anos depois em Londres, onde resolveram montar a banda. Dai os diversos idiomas que a banda fala e as versões em francês impecável de algumas músicas.

A princípio, o som não tem nada de mais. É apenas uma banda competente, com um som vigoroso e arranjos de uma simplicidade beirando o punk rock. É justamente ai que reside a qualidade principal do grupo. Levando ao extremo a máxima de que 'menos é mais', o Placebo vai se impondo em estruturas simples e elegantes, timbres sofisticados, riffs de guitarra diretos num padrão diferente de afinação (F Bb Eb Ab C C), bases seguras e a voz muito particular de Molko. No mais, é uma síntese muito consistente e contemporânea do glam rock, do punk e dos climas sombrios do pós-punk inglês.

A banda apareceu no cenário mundial em 1996, com um disco homônimo e entrando direto no quarto lugar das paradas inglesas com a música 'Nancy Boy'. Logo depois estavam sendo convidados por David Bowie, ele mesmo, para tocar no Madison Square, em Nova York, junto com Sonic Youth, Lou Reed, Billy Corgan (Smashing Pumpinks, Zwan), Frank Black (Pixies), Robert Smith (The Cure) e Foo Fighters. Eram os convidados para a festa de aniversário de 50 anos de Bowie. Em 1997, o Placebo abriu alguns shows da turnée européia Popmart, do U2, e receberam de Michael Stipe (R.E.M) o convite para atuarem no polêmico filme Velvet Goldmine, que falava sobre o Glam Rock com o foco na vida de Bowie. Stipe era o produtor e o Placebo atuou tocando, entre plumas e paetês, 20th Century Boy, do T.Rex, clássico da era glitter. David Bowie viria ainda a fazer algumas participações em shows do Placebo e, mesmo, a gravar com a banda.

Em 1998, envolvidos numa atmosfera depressiva de Molko e brigas com o produtor, lançaram Without You I'm Nothing. Um disco mais intimista, com climas densos; "elementos de melancolia e de coração partido", segundo Molko. Três anos depois sairia o fabuloso Black Market Music, onde o Placebo reencontra a energia do primeiro trabalho com toda a sofisticação e personalidade já adquirida pela banda. Sleeping With Ghosts (2003) confirma o disco anterior e catapulta o Placebo para o hall das grandes bandas inglesas, com uma sequência de hits e vídeos impactantes. Em 2004 sai a coletânea de singles da banda com o sugestivo nome, Once More With Feeling. Uma boa oportunidade para que quiser dar um geral na carreira da banda até agora.

Voltando à Salvador, o Placebo passa por aqui numa sequência de shows que ainda incluem Recife, Porto Alegre, Florianópolis, Brasília, Campinas, São Paulo e Rio de Janeiro. Todas as cidades terão cinco finalistas do festival Claro que É Rock abrindo os shows, e ainda diputando vagas para a finalíssima em setembro. As bandas que abrem a etapa de Salvador são: Brinde, Los Canos, Ronei Jorge e os Ladrões de Bicicleta, Canto dos Malditos na Terra do Nunca e a Theatro de Séraphin (deste imodesto escriba que vos incomoda).

Portanto, mais do que uma geral na vida e obra da banda Placebo, este post é uma convocatória. Para os que estão em Salvador, e mesmo que não sejam grandes fãs do Placebo ou torçam a cara pra uma banda que o vocalista parece uma garota, compareçam à Concha Acústica e vamos tentar fazer barulho para que esta terrinha possa entrar, um pouco que seja, no circuito de rock que varre o mundo.

Posts de bolso para leitores apressados

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The Stranglers, punk rock e artes marciais.

por Miguel Cordeiro

- O termo heavy metal foi cunhado pelo escritor beat William Burroughs mas não tinha um significado musical, e a primeira canção considerada heavy metal é You really got me do grupo inglês The Kinks.

- A banda punk inglesa Sham 69 não obteve visto diplomático das autoridades americanas para se apresentar nos Estados Unidos na segunda metade da década de 70, é que eles temiam o discurso panfletário da banda e receavam que a anarquia punk se alastrasse pela América.

- O grupo hoteleiro Holliday Inn baniu para sempre, de todas as suas unidades espalhadas pelo mundo os ingleses do The Who. Eles foram proibidos de se hospedar nos hotéis da rede por conta das arruaças promovidas pelo grupo. Keith Moon era o mais bagunceiro. Jogava aparelhos de televisão pela janela, destruía quartos, andava de moto pelos corredores e teria jogado um automóvel numa piscina.

- Eric Clapton e Cat Stevens foram vistos, em dias separados, passeando tranquilamente e incógnitos na festa do Bonfim em Salvador, no verão de 1974. Já no inicio de 1968, Marianne Faithful, mulher de Mick Jagger à época, tomava banhos de mar noturnos na praia de Arembepe vestindo um longo vestido branco e os pescadores locais a chamavam de Yemanjá. Janis Joplin quando visitou a Bahia freqüentou a minúscula praia de Shangrilá, situada na encosta do Corredor da Vitória.

- Beatles e Rolling Stones eram grandes amigos mesmo em pleno clima de competição nos anos 60. Passeavam juntos pelas ruas de Londres fazendo festinhas em limusines e assim, evitavam os locais públicos e o assédio dos fãs.

- Antes do Motorhead, Lemmy Kilminster tocou com o grupo de rock progressivo/espacial Hawkwind e bem antes disso ele foi roadie de Jimy Hendrix

- O Nirvana veio ao Brasil tocar no Hollywood Rock e Kurt Cobain vivia tão chapado, tão doidão e alienado da realidade que só foi saber que o festival era patrocinado por uma marca de cigarros quando João Gordo do Ratos de Porão lhe deu a informação. Kurt teve um acesso de fúria, cuspiu na câmera da Globo e mostrou a binga. Tarde demais, tinha vacilado e caído em mais uma armadilha do sistema.

- No final dos anos 70 o cantor compositor punk Elvis Costello foi eleito o roqueiro mais feio do ano. Conhecido por suas tiradas irônicas e seu humor inglês devastador, Costello rejeitou o prêmio dizendo que o passava para qualquer um dos integrantes do Rush. (N.da R. Hoje Costello é casado com uma das mulheres mais bonitas do jazz norteamericano, Diana Krall)

- Nos anos 60 quando os Stones excursionavam pela América e paravam em Nova York, Bob Dylan sempre aparecia no hotel para jogar conversa fora, fazer uma farra e tirar um som com eles. Numa dessas Brian Jones ficou tão adrenalizado e tocando gaita com tanto fervor que seus lábios sangravam sem parar.

- Quando Jerry Garcia do Grateful Dead morreu em 1995 e a noticia começou a se espalhar, aconteceu um dos primeiros 'congestionamentos' monstro na Internet. Todo mundo estava on line comentando sobre a vida & morte de Garcia e lamentando a sua perda.

- Integrantes do The Who afirmam que o sonho de Keith Moon era ser baterista dos Beach Boys e que ele não pensaria duas vezes em largar o Who, mesmo com o grande sucesso deles, para se juntar à banda dos irmãos Wilson.

- No inicio da carreira David Bowie costumava alugar limusines em nome de integrantes dos Rolling Stones, e quando as notas fiscais eram apresentadas à banda pela gravadora os Stones negavam aquelas locações. Só depois de algum tempo foram descobrir que o trapaceiro era Mr. Bowie.

- A grande banda punk inglesa Stranglers além de ter um som forte e poderoso era temida por ter integrantes temperamentais e um baterista, Jet Black, praticante de jiu jitsu. Certa feita eles lançaram um disco e um crítico caiu pesado malhando o trabalho dos caras. Resultado: Jet Black foi atrás e com a mão pesada caiu malhando a cara do crítico que se deu ao trabalho de esculhambar o Stranglers.

- A CIA descobriu um plano audacioso elaborado por ativistas barra pesada dos anos 60, entre eles John Lennon, que planejavam despejar uma quantidade absurda de LSD no reservatório de água de Nova York.

- Entrevistado por um repórter e perguntado sobre o que achava do 'novo jazz' executado por músicos como Wynton Marsalis, o genial Miles Davis respondeu na lata: 'o que ele faz não tem nada de novo, é uma versão piorada do que eu fiz há quarenta anos atrás e ele se veste parecendo o meu pai'.

- Frank Zappa e o Velvet Underground excursionaram juntos pela Califórnia nos anos 60. Zappa sempre se apresentava numa determinada cidade três ou quatro dias antes do Velvet passar por ela, e Zappa fazia questão de anunciar com seriedade para a platéia que nos próximos dias iria tocar ali uma banda péssima, horrível chamada Velvet Underground. Pobre Zappa, para o seu azar muitos anos depois o Velvet se tornou uma das bandas mais influentes do rock.

Distorções em nanquim: ligações entre os quadrinhos e o rock

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Robert Crumb enxerga o futuro

por Fernando Ribeiro

Falar simplesmente de música não diz tudo quando o assunto é rock and roll. Todo o gênero se mostra mais consistente quando contextualizado como parte da contra-cultura. Dentre os companheiros de trincheira do rock (e este são muitos) destacam-se as Histórias em Quadrinhos. Sempre prontas a desafiar o status quo com a mesma rebeldia e força.

No início do pós-guerra, além da euforia que toma os países que saíram vitoriosos do confronto, uma paranóia nacionalista começa a se instaurar nos Estados Unidos da América. Paranóia esta que, liderada pelo senador Joseph McCarthy, culmina na criação do Comitê Contra Atividades Antiamericanas (caça as bruxas 1950 - 1958). Um dos seguidores do senador, o psiquiatra Fredric Wertham, publica uma série de artigos acusando as HQs de promoverem a "mutilação psicológica das crianças". Encontrando solo propício para o crescimento de suas idéias, o ultraconservadorismo em vigor aponta um dedo inquisidor sobre os quadrinhos. Até um sub-comitê é criado no senado para investigar o assunto. A partir deste momento a produção de quadrinhos nós EUA toma dois caminhos distintos: um grupo de editoras (preocupadas com a publicidade negativa gerada) cria um estatuto de autocensura denominado de "comics code"; por outro lado, editoras e artistas passam a ignorar e afrontar a onda reacionária de maneira explicita. Esses últimos colocam a 8° arte no âmbito da contra-cultura por princípio.

Na década de 50 destacam-se nos quadrinhos underground a trilogia de horror publicada por William Gaines e a revista "Mad" de Harvey Kurtzman. Tendo herdado de seu pai a "Educational Comics" (editora voltada a publicação de biografias de santos e personagens históricas) Gaines transformou-a na "Entretainment Comics" tendo como linha de frente as revistas " The Crypt of Terror" ( posteriormente rebatizada como "Tales from the Crypt"), The Vault of Horror" e "The Haunt of Fear" (as palavras "terror" e "horror" eram expressamente proibidas de aparecer nos títulos dos quadrinhos pelo "comics code"). Kurtzman trabalha um tempo nas HQs de terror de Gaines até, em 1954, emplacar seu projeto de quadrinhos satíricos, a revista "Mad". Embora possa parecer datada hoje em dia, a revista, que se tornou um grande sucesso editorial, era uma força de contestação numa América que tendia a se tornar intolerante. Kurtzman é dono de um traço versátil e virtuoso tendo influenciado milhares de artistas que vieram depois.

Na década de 60 a contra-cultura torna-se extremamente popular. Em 1962 a revolução sexual ganha os confins do universo com a Barbarella de Jean-Claude Forest. Em 1965 ocorre o primeiro grande festival hippie de São Francisco, "A tribute to Dr. Strange" (destaca-se a apresentação do Jefferson Airplane, uma das últimas com o baixista da formação original, Bob Harvey). O nome do evento é uma homenagem ao presonagem dos quadrinhos de Stan Lee, o paladino das artes místicas, Dr. Estranho. Dois anos depois Robert Crumb consegue imprimir cinco mil exemplares do número 1 da sua "Zap Comics" e torna-se uma celebridade do underground vendendo sua própria revista na esquina da Haight com a Ashbury. No ano seguinte desenha a capa do disco "Cheap Thrills" de sua amiga e cantora Jains Joplin. Das páginas da revista do Crumb surgiram também outros talentos, Rick Griffin e Victor Moscoso tornaram-se os principais cartazistas da psicodelia da Califórnia. O roteirista Harvey Pekar foi o pioneiro (ao lado do próprio Crumb) dos quadrinhos auto-biográficos, gênero intimamente ligado aos quadrinhos underground.

No final dos 60 estouram protestos estudantis em todo o mundo. Na França o grupo dos Situacionistas ilustra seus manifestos com paródias de quadrinhos de grande circulação. Deste movimento participaram Malcom McLaren, Vivianne Westwood e Jamie Reid (empresário, figurinista e designers dos Sex Pistols) que se tornaram mentores do movimento Punk. O próprio movimento Punk teve seu nome tirado de uma revista que misturava quadrinhos e reportagens (assumidamente inspirada em Kurtzman). É a era do "faça você mesmo", sua música , seus quadrinhos e seus zines. Na Inglaterra Alan Martin e James Hewlett (esse último desenha hoje os personagens da banda fictícia Gorillaz) criam as aventuras da "Tank Girl". Na Itália o marco inicial do Punk não é nenhum álbum ou single, mas a revista "Cannibale"(1977) que reúne artistas como Stefano Tamburini, Tanino Liberatore, Massimo Matioli, Filippo Scozzari entre outros. O desenhista Gary Panter é figura lendária da cena Punk de L.A. E Charles Burns desenhou a capa de "Brick by Brick" de Iggy Pop.

O "art rock" dos oitenta tem seu espelho nas revistas "Raw" em Nova Yorque (editada pelo renomado Art Spigelman e Françoise Mouly), a "Weirdo" na Califórnia e a "Frigidaire" na Itália. Os irmãos Hernandez, além de serem responsáveis pelo gibi underground de maior sucesso dos 80 (Love and Rockets), formaram a banda independente Nature Boy e emprestaram o nome de sua revista para a banda dos ex-Bauhaus Daniel Ash, David J e Kevin Haskins. Jaime Hernandez ainda fez a arte de uma famosa capa do "7 Year Bitch". Alan Moore escreveu Watchmen; roteiro que redefiniu os quadrinhos de super-heróis, recheado de citações de Dylan, Iggy Pop e David Bowie, entre outros; também fez parte da banda de rock "The Sinister Ducks" com direito a capa desenha pelo britânico Kevin O´Neil (A Era Metalzóica, Marshall Law e Juíz Dread) artista proibido de ser publicado nos EUA pelo "comics code" (sim, essa aberração do Macartismo perdura até os dias de hoje).

Os anos 90 marcam uma nova explosão na contra-cultura, tão forte que se chega a questionar a própria terminologia usada para o gênero (existe ainda uma contra-cultura, ou essa cresceu tanto que passou a ser um traço fundamental dentro daquilo que podemos chamar orgulhosamente de cultura?). Não é por acaso que a maior editora de quadrinhos da época (Fantagraphics Books) tem sede na Seattle do Nirvana e da Sub Pop. As ligações das HQs com o rock passam a ser inúmeras. De Courtney Love chamando Dame Darcy de deusa do gênero, Daniel Clowes tem frases de seus quadrinhos citadas em letras do R.E.M. , desenha o clipe de "I don´t wanna grow up" na versão dos Ramones bem como uma capa para o Supersuckers. Adriam Tomine reproduz os temas de solidão introspectiva correntes no rock na sua revista "optic nerve" e assina uma série de capas para o The Eels. Debbie Drechsler é uma "riot girl" dos gibis, tratando de violência, incesto e estupro na sua controversa "Nowhere".

O artista mais bem sucedido da Fantagraphics é Peter Bagge, támbem morador de Seattle. Em 1990 lança "Hate", seu personagem principal, Buddy Bradley, sempre com sua camisa da flanela (mesmo antes do estouro do que se veio a se chamar de Grunge), nunca teve um "emprego de verdade" e fala de quadrinhos e de música com adoração e niilismo semelhante ao dos personagens de Nick Hornby. No traço, Bagge bebe direto de Crumb e Kurtzman, seu texto é irônico e trata a cultura undergound com um desdém semelhante ao do mestre Crumb. "Cês vão ver os Ramones? Por quê? Vocês só estão encorajando esses idiotas a adiarem uma aposentadoria que já vai tarde!" diz Buddy um mês depois de se ver obrigado a vender todos os seus discos do Ramones para pagar o aluguel. É nesse universo de "perdedores" e esnobismo cultural onde Bagge ri de si mesmo e dos que o cercam. Questiona o meio em que opera e, ao fazê-lo, o renova.

Mas a História não para por ai. Longa vida ao rock, longa vida aos quadrinhos.

Interpol, corte sob medida

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por Marcos Rodrigues

Acendam as luzes. O título paradoxal para uma melancolia que permanece. "Existe uma dignidade que nos preserva de desaparecer em Deus e que transforma todos os nossos instantes em preces que não faremos jamais". Acendam as luzes. Nem tudo está perdido. "Não necessito tanto de luz quanto de trevas (...) me atemoriza demais o que há de banal na existência humana", dizia Hölderlin. Passados mais de duzentos anos, a inversão faz sentido. Hora de sair da escuridão. Não da introspecção que nos preserva, não da meditação que nos alimenta. É apenas hora de acordar.

Turn on the bright lights (2002, Matador), o álbum de estréia do quarteto novaiorquino Interpol, marca antes de tudo um despertar. "Quando feiúra, design pobre & desperdício estiverem sendo impostos a você, transforme-se num luddita, jogue o sapato no mecanismo, retalie. Esmague os símbolos do Império, mas não o faça em nome de nada que não seja a busca do coração pela graça".

A música do Interpol recoloca, de alguma forma, na pauta do dia a questão do fazer. Do artefato, da arte enquanto uma via humana para chegar ao sublime. Sim, uma perspectiva moderna ainda. O Rigor & a Precisão que nos mantém vivos, numa competição com Deus. Um som obsessivo. Rigor & Precisão que liberta. Elipses do pós-punk inglês no seu encontro tangencial com a vanguarda de New York, sobretudo o Television.

Uma poética que retoma a inevitável Paris dos anos loucos. Tom era Verlaine, Paul Banks (vocal, guitarra, letras) também foi encontrado na Cidade Luz. No rol de referências múltiplas, não à toa, a concepção gráfica da banda apoia-se no design construtivista russo do início do século XX. Le Rouge et Le Noir. Estética beirando os sistemas totalitários. Alemanha e Rússia. Nisso também chegam-se outras bandas novas como o Franz Ferdinand. Esse minimalismo racional de uma utopia que encontramos de novo, sem as ingenuidades de outros tempos.

O som do Interpol só poderia ser essa trilha sonora da desilusão moderna. Consciência de solidão. Não a consciência de impotência que paralisa, mas uma lucidez de se saber humano e de explorar essa beleza trágica. Love songs cinzentas. I will stand by all this drinking if it helps me through these days / It takes a long time just to get this all straight / I'll showcase on Route 7 when I find the right place. Navalha na carne.

O segundo álbum, Antics (2004) veio e, para desespero da turma do 'quanto pior melhor', confirmou a determinação da banda em fazer rock adulto. Outro termo que virou palavrão nesses dias de Peter Pan. Os acordes dissonantes, distorcidos, em dedilhados insistentes, cortantes; baixo e bateria num combo classudo, quebrando compassos; expresso trans-siberiano. Teclados etéreos e uma voz que remete, é fato, ao monolito chamado Joy Division.

De toda a (boa) nova cena novaiorquina, o Interpol está alguns degraus acima dos seus vizinhos: The Stills poderiam chegar perto caso se levassem mais à sério. Revisitam outras épocas sem serem saudosistas: não há aqui roupinhas de brechó dois números abaixo, nem simulações de gravações em estúdios analógicos, nem desleixo estudado. São uma banda do novo século e deixam isso claro no cuidado com as gravações e nos caminhos que apontam com suas composições. E, no mais, se também usam ternos completos, o fazem com cortes sob medida. My best friend's a butcher / He has sixteen knives.

O Interpol em 2005 continua na tournée do último álbum. Sold out em várias cidades da Europa até Junho deste ano. Sinais de que vida inteligente continua possível no rock'n'roll e os estilhaços, de uma fragmentação que nunca existiu de verdade - não, não vivemos em fractais - estão sendo recompostos. I wish I could live free / Hope it's not beyond me / Settling down takes time / One day we'll live together / And life will be better.

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Trilha incidental: Say Hello To The Angels (Interpol, Turn On The Bright Lights)