Bang!

Reuters

Jagger em Copacabana

por Sérgio 'Cebola' Martinez

Para Mick, Keith, Charlie e Ronnie

Uma homenagem a Ray Charles, pela maior banda da Terra, na praia de copacabana, para um público de mais de um milhão de pessoas, neste sábado inesquecível. Falando assim não soa meio surreal? Quando The Night Time Is The Right Time ia lá pela metade, com os vocais de apoio entoando o mantra soul night and day, night and day, night and day, acabaram as dúvidas. Eu não estava lá, pela primeira vez em um show dos Rolling Stones no Brasil, mas fui pego de jeito. Eles ainda são os melhores sim. Semana que vem algum garoto ligado vai descobrir a salvação do rock, vai sair na New Musical Express como uma das cinco melhores bandas de todos os tempos, na coluna de Lúcio Ribeiro, nos blogs antenados e nos progamas de rádio de novo rock. E de novo, e de novo, e novamente, e de novo. Mas as "caricaturas de si mesmo" como este crítico inteligente escreveu na Bizz, vão estar por aí, autocaricaturizando-se em cima de um palco, tocando pequenas peças de música velha e acabada.

Pois sim. Uma vez perguntaram a Charlie Watts o que ele achava de não ter sido citado em uma lista (de novo, novamente e de novo), dos 10 ou 100, ou sei lá, melhores bateristas de todos os tempos. Resposta: "Eu sou um Stone". Bate Charlie, soca sem dó esta estúpida competição de listas e atitudes vazias e posturas quadrúpedes desta "pós-modernidade" de chupeta. Tanta coisa em uma resposta de aparência simples e arrogante. A arrogância inteligente. Um gentleman rocker, Mr. Charlie Watts sabe quem ele é. Sabe o que representa. Percebe o peso da sua História de criação, quedas, cinzas e glória. "O impressionante não é os Beatles terem terminado, o impressionante é os Stones ainda continuarem". Na verdade o engraçado é que John Lennon disse isso aí lá pelos idos da década de 70. Mas se me perguntassem por que eles ainda estão na ativa, responderia na lata: ora, porque sim. John Lee Hooker ainda gravava discos com 80 anos de idade, Johnny Cash gravou os melhores discos de sua vida à beira de sua morte.

Os Stones lançaram recentemente (ou no século passado neste calendário de rompimentos & abortos ) uma aula de rock n' Roll, A Bigger Bang, reinício, respeito. Podem rir das rugas de Keith Richards, do acabado Ron Wood (citando Pedro Bó), ou dos 62 anos de Mick Jagger. Mas quem é você, infeliz? Onde estaremos daqui a quarenta anos? Merda, estaremos sem os Stones, certamente, e pensar nisto já é um saco.

Na década do sonho natimorto, das flores & ácido, do desbunde, Beatles & Maio 68, e tanto mais, eles eram a encarnação da rebeldia e violência. Let It Bleed, e as coisas sangraram mesmo pro lado deles. Por favor assistam Gimme Shelter. Aquela insanidade lúgubre merece um ensaio profundo e cuidadoso. Nos setenta, o hedonismo, a luxúria, a esbórnia tomou conta e quem eram os maiores representantes? Por favor ASSISTAM Cocksucker Blues, documentário maldito até hoje proibido mas que se arruma aí pela rede. (rede abençoada rede). Eu já tenho o meu (valeu aí Nei). Na década de oitenta, vá lá, mostras de cansaço criativo, brigas internas, confusão mas péra lá. O Tatoo You garantiu a redenção. Por favor, TENHAM o Tattoo You. Sobreviventes da queda, os anos 90 são assombrados por um Vodu. O Voodoo Lounge foi uma ressureição. Um puta disco, celebrado na época e até hoje com canções presentes no show. Em 1995 no Rio de Janeiro, eu estava lá, nas duas datas. 98 também, desta vez com nada mais nada menos que mr. Bob Dylan. Absolutamente inesquecível a visão de Dylan e Jagger juntos no palco em Like A Rolling Stone, com Bob Dylan tirando um sarro de Mick Jagger, cantando, às vezes, a parte que provavelmente seria de Mick. E, claro, sorrindo pela sacanagem. Agora a explosão. A explosão primordial, a maior de todas. A Bigger Bang. Talvez o último, mas quem pode dizer? Eu vou estar esperando, pagando pra ver & ouvir.

O show continua, tem de. Ainda é rude, poderoso. As canções estão quase no osso. Sem adornos desnessessários, básicas, como devem ser. Que versão é aquela de Get Off Of My Cloud? Descambou no soul e acabou sendo o ápice de um set list que abriu com Jumppin' Jack Flash e terminou com I Cant Get No (Satisfaction . E é aí que está o segredo. Da longevidade e da urgência. Da vida eterna, afinal. Por onde quer que vá, de qualquer que seja o tamanho, por maior que seja a conta bancária, o Rolling Stones foram, são e sempre serão uma banda de garagem. Na alma, garotos que cresceram alimentados pelo blues & soul profundos da américa negra. Robert Johnson e Chuck Berry. Ray Charles e Muddy Waters. Ombros de gigantes.

Quando começam (os caras inteligentes & modernos) a especular sobre a relevância de uma banda de sessentões no mundo de hoje eu lembro de um sorriso. Eu lembro de Keith Richards, dando aquela risada esgarniçada, chiada, envelhecida por décadas de abuso & paixão, com um cigarro pendendo entre os dentes, um copo de uísque na mão, e um olhar perscutador, profundo e estranho. Basta isso. Não sei dizer porque. Mas aquela risada me transmite a segurança de uma pedra de toneladas de canções ternas & furiosas, arquivadas em uma alma apaixonada & atormentada, mas verdadeira. Uma pedra sólida, inquebrável, bruta e muito, muito pesada...mas que ainda rola.

Mustang, Rock de alma lavada


Oxymoro, muito além da mesmice

por Cláudio Moreira

Arte como expressão da alma. Esse deve ter sido o pensamento que levou Carlos Lopes, cantor, compositor e guitarrista, a criar, em 2000, a Mustang, pouco depois de dissolver a Dorsal Atlântica. Essa, a seminal banda carioca do movimento heavy metal nacional que conquistou projeção no circuito internacional da música alternativa pela sua ousadia criativa. Ela foi pioneira no Brasil em juntar metal e punk hardcore (o original), elaborar letras com referências culturais além do habitual no gênero, fazer a primeira ópera trash metal no mundo, manter uma atitude não colonizada e influenciar os então garotos do Sepultura e outras bandas daqui e de fora. Depois de quase 20 anos de labuta heróica, fugindo da mediocridade, Carlos Lopes resolveu apertar a tecla do "foda-se!" quando se viu cansado de tantos problemas internos na banda e por sentir que a cena que ajudou a consolidar em território tupiniquim tinha perdido a essência rebelde de outros tempos.

Carlos "Vândalo" , como era conhecido nos tempos iniciais da era metal no Brasil, não teve outro jeito a não ser seguir o que sua mente e o coração clamavam. A Dorsal, como sempre foi chamada pelos seus fãs, entrava para a posteridade do underground intergaláctico, porém seu criador não iria abandonar as trincheiras da guerrilha cultural de fazer música sem fronteiras e longe do senso comum. A Mustang não foi a única cria desse idealista cultural, que parece ter nascido para transpor paradigmas. Seu outro rebento, a Usina Le Blond, devotada ao funk psicodélico e outras coisas com balanço radical, também tem servido para desafogar outras nuances da sua criatividade musical.

Um novo capítulo do rock brasileiro (infelizmente ainda nos subterrâneos) está sendo escrito pela Mustang, radiografada aqui em seu segundo trabalho, "Oxymoro", lançado, em 2004, pelo selo goiano Monstro Discos. A banda já tinha debutado dois anos antes no selo carioca Old School Lessions com o "Rock´n´roll Junkfood". Agora, o grupo acaba de lançar, novamente pela Monstro Discos, o cd "Tudo está mudando...mas nem sempre pra melhor" (em breve resenha aqui no clashcityrockers).

Na época do "Oxymoro", o power trio era composto pelo Carlos Lopes, Américo Mortágua (bateria) e Wlad Vieira (baixo), contando ainda com a participação pra lá de especial do maestro Rotieh Ortseam (teclados).

O título "Oxymoro" surgiu de uma entrevista de Carlos Lopes (que também é produtor e jornalista) com Wayne Kramer do lendário MC-5. O ancestral termo grego se refere, basicamente, a junção de conceitos aparentemente opostos que unidos dão vazão a novas idéias, pretensamente antangônicas, presentes até hoje na linguagem utilizada em nossas vidas, como, por exemplo, "silêncio ensurdecedor".

A Mustang é uma banda de textos fortes que dão sustentação a um instrumental bem feito e recheado de feeling, mas muito feeling mesmo, tocado por bons músicos. É rock´n´roll dos bons, orgânico, mas feito com muita criatividade e sem dogmatismo de nenhuma espécie.

Segue resenha sobre o cd e uma entrevista


Oxymoro

A obra - O cd abre de peito aberto para a festa dionisíaca em "Muito além". É impossível não se emocionar com a pureza da energia bruta desse rock´n´roll cheio de guitarra faiscante e baixo pulsante na linha evolutiva Status Quo/Hellacopters, que parece conter a senha existencial de Carlos Lopes sobre as cobranças estéticas e de atitude sobre seu passado militante no metal e sobre os novos rumos de sua carreira artística. Duvida. Então, perceba a mensagem: "pare de me olhar assim, oh yeah!/se desapegue do passado/uma outra parte de mim está livre para o bem e para o mal/ei, você não lava minha cueca, então me deixe em paz...ei, nós não temos compromisso/então, não te devo satisfação! Eu estou muito alééémmm!!!".

Antes de recuperar o fôlego da diversão cheia de adrenalina com air guitar, "Rosana está?" surpreende e conquista na primeira audição. Seria um hit se no Brasil existissem (salvo exceções, é claro) emissoras de rádio realmente independentes e atuantes fora da lógica do 'jabá' ou de outros interesses. Um mezzo glitter rock mezzo surf music, onde Carlos Lopes desconstroi preconceitos ao prestar uma homenagem à transformista Rosana Star, um ex-paquito. A letra existencial corajosa carrega no fino humor com duplo sentido pontuado por vocais alternados e superpostos: um, doce e o outro, 'das cavernas": A forma como Carlos Lopes canta essa música é uma atração à parte e é só a ouvindo para entender a força que sua interpretação dá aos seguintes versos: "eu quero ver se Rosana está (star)?/se o mundo caminha, eu não sei para onde vai/a frustação corroi/pior ficar parado e só reclamar/aqueles que fazem tipo, 'cabeça intelectual', não gostariam de ter um filho homossexual/da boca para fora, é fácil!/ quero ver, é entrar um pouco de sinceridade/nos teus olhos, a dor de quem não se compra/ amar o próximo é respeitar/ninguém disse que seria fácil/melhor fazer do que falar/Rosana está (star)?".

Desista de prevê o que vem na seqüência porque em "Saco Cheio" a farra continua num hard rock modernoso pontuado por guitarra weezeriana (fase Pinkerton) e na letra que aborda a história de um cara sem paciência para a baixa estima de sua namorada. A Mustang demonstra não ter compromisso com a previsibilidade e nem com a necessidade dela, mas sim com o espírito livre de criação. Isso fica claro em vários momentos do cd, como no arranjo dessa canção marcada pelos teclados psicodélicos beatleanianos de toque inusitado e na forte marcação da bateria de Américo Montágua.

Dignidade – O artesão rocker reforça sua profissão de fé na integridade da sua trajetória musical em "Tudo pelo dinheiro". É aquela velha lição – que pode parecer papo ingênuo, mas lá no seu fundo filosófico não é mesmo - de que não podemos abrir mão de nossos sonhos. Rock pesado sem maneirismo, mas com teclado progressivo viajandão e solo de guitarra bem old school. A paixão do mentor da Mustang pela Ufologia surge em "Contato", onde o som espacial ganha corpo nos teclados, moog e guitarras e no texto que diz que "uma resposta e um rosto cruzaram o hiperespaço pela força do pensamento sem um único/ com destino ao acaso, acertaram o alvo/ fizeram contato/não, não sai de perto/ esse é próximo século/ não vamos destronar deus/não há motivo para se assustar".

Outro destaque do "Oxymoro" é a faixa "Esse mundo é muito grande", glitter com refrão grudendo no ouvido. Impossível de novo ficar insensível ao ouvir que "esse mundo é muito grande/eu vou encontrar alguém/em outro lugar/com erros diferentes/eu já cansei de suportar...vontade que cala/diálogo sem fala/verdade muda/que nasce morta/batendo de porta em porta/vou encontrar alguém..." .

Sob o brilho da influência marcboliana, a Mustang prossegue com sua aula de como fazer rock com paixão e cheio de variações melódicas em refrões ganchudos, como em "Caridade". Essa música traz à tona as contradições de um mundo tão caótico e cheio de rancor porque "se o mundo está doente, não é a toa, se é feito de pessoas honradas como você, você, você...para sentir-se melhor, coloque a culpa na governo, na polícia e na política...mas são todos seres vivos e com defeitos como você...". Efeitos psicodélicas de gravações invertidas dão o tom mágico para Carlos Lopes cantar que "você é tão caridoso e caridade precisa de publicidade...mas, entre quatro paredes, você coloca seus demônios para fora...". O arrepio continua até na versão instrumental da música tocada em teclados fora de órbita. Cortesia by maestro alemão Rotieh Ortseam, que "baixou" no estúdio para abrilhantar as gravações. Será que isso foi mais um lance do intricado universo simbólico de Carlos Lopes?!. Who Knows...nada com a Mustang parece mesmo passar perto do previsível.

Longe dos hypes - A pegada mais hard´n´heavy do "Oxymoro" fica por conta de "Cheiro de Mijo guardado", onde Carlos Lopes destila sua velha veia crítica aguçada e algum humor para falar da sua falta de paciência com a cena rock brazuca tão marcada por modismos, modismos às avessas, atitude colonizada e posers de todos tipos. Sem cerimônias, ele avisa que "parece que só tem viciado ou viado/nada contra, mas vá fumar pro outro lado...eu amo rock´n´roll/ mas essa cena está um saco de gato...o inferno está lotado/ de gente com boas intenções/são os filhos desgarrados/atitude furada/ estética colonizada... essa é a noite do mijo guardado".

Outro momento agradável do cd começa ao som da, quem diria, saudosa estática de vinil, que abre o neo rhythm´n´blues "Sem mulher, sem dinheiro". Um piano boogie, uma guitar hard blues e um vocal glitter comandam a folia. A canção relembra o pesadelo dos que vivem atolados na esfera hedonista da vida, pois "nesse mundo, ninguém pode caminhar sozinho...sem mulher, sem dinheiro...sem grana, sem fama: estou puto!".

Se fazer declaração de amor na cultura de massa é chover no molhado, a Mustang consegue virar esse jogo imagético, pois em "Eu te amo" , um rock ligeiramente marcboliano, Carlos Lopes divaga para uma musa imaginária: "...eu te amo/eu te quero tanto/não banco para nós um lugar especial/nada acima do bem e do mal/mais sabedoria, acumula mais riqueza/ que o caminho das pedras até o Santo Graal/ para sorver o cálice do seu amor...". Brilhante?! Sei que não, mas transbordando criatividade autoral e senso de liberdade como há muito tempo não acontece no rock cantado em bom português.

O power pop melancólico mutante "Fim de semana" é um grande achado do repertório da Mustang. Letra existencial, exalando sinceridade, trata da busca de felicidade da humanidade, que joga todas fichas nos finais de semana num contraponto ao dia-a-dia, que lhe rouba a alma. Dilema conhecido, intercalado por quebradas jazzísticas, ele emenda: "não espero muita coisa dessa vida/mas, não perco a esperança/rio da minha tragédia/dessa situação comédia/ralo de segunda a sexta-feira/ à noite, ganho meu salário de fome...viver assim será que é alienação ou simples diversão?/chegou o fim de semana/sem compromisso/um brinde a nova moral/nem tudo é eternamente já". Quando se pensa que a música vai caminhar de forma linear entra uma mensagem nonsense – saindo de voz de megafone, que nos remete ao obscurantismo patropi dos anos 70, sob acompanhamento de solos de guitarra e moog em transe enlouquecido – para informar que chegou "uma nova segunda-feira, venha, sorria/você é um trabalhador brasileiro...aceite a sua situação, sua situação, sua situação...". É o fantasma do "Grande Irmão" de George Orwell assombrando o imaginário coletivo para que ele não lute contra o seu "destino". Rock visceral que emociona os de mente aberta e espírito libertário.

Para fechar a tampa, "Ela lê a Bíblia" – um rockão stoniano com introdução instrumental bem AC/DC (fase For Those About Rock...) e solo de guitarra desconcertante –, que fala de um cara que pediu a deus uma garota que fosse "dama de dia e puta na cama". Mas, o incrédulo rapaz fica extasiado porque, oh céus!, como "...ela lê a Bíblia e faz de tudo...ele atendeu, valeu deus!". De forma espirituosa, o personagem da canção escapa de passar como um pecador laico ao agradecer a deus por facilitar seu prazer carnal. A Mustang tece uma crítica enviesada ao falso puritanismo que inunda corações e mentes mundo afora. Mais "Oxymoro", impossível.

Pingue-pongue com Carlos Lopes (Mustang)


Carlos Lopes, criador da Mustang

CCR – Antes de mais nada, é importante superar a questão de analisar o fim da Dorsal Atlântica e da criação da Usina Le Blond e da Mustang sob uma ótica de ruptura de vida pretensamente impensável num mundo tão cheio de paradigmas. O que interessa saber é qual foi a mudança em essência ocorrida na cabeça daquele jovem que criou uma das mais influentes bandas do rock pesado mundial no final da ditadura militar brasileira até chegar ao cara mais experimentado de quarenta anos que continua fazendo rock autoral visceral sem fronteiras em tempos de Brasil redemocratizado, mas infestado de tantos modismos musicais?

CL – Nenhuma mudança é de uma hora para a outra. É algo que vai se delineando. Há quase 2 décadas descobri que era isso o que me diferenciava. Eu me sentia mais diferente do que os diferentes em muitas coisas e iguais aos iguais em outras. Sempre amei descobrir, pesquisar, romper convenções, contradizer a contradição. Eu sou muito sensível, isso quase me matou muitas vezes, mas aprendi que o que vale nessa vida é a ação consciente, mesmo que solitária, mas nunca a intenção. Na vida tudo é ilusão, é um jogo jogado por todos para que no dia seguinte possam acordar, pelo menos acreditando que exista um estilo favorito, uma estética real ou um Deus palpável. A destruição de tudo isso, te trás a um lugar santo, que não sofre interferência de nada fútil. Eu caí de cabeça nessa realidade alternativa, por assim dizer, há pelo menos 15 anos. Por isso falo que venho mudando (ou me aprofundando ano após ano) há bastante tempo. A música acompanhou minha cabeça. Ela representa uma parte mais atual do meu eu, mas ainda é incapaz de retratar o que caminha dentro de mim, como um corcel, ou melhor: um Mustang.

CCR – Ao ouvir o segundo cd da Mustang, "Oxymoro", tem-se a sensação que ali está registrado o DNA artístico de um músico que quer fugir de qualquer "camisa-de-força" estilística. Pode-se perceber nitidamente que é um cd cheio de visceralidade e paixão. Qual foi a bússula existencial que lhe orientou para compor material tão rocker (no sentido romântico e não colonizado do termo) e ao mesmo tempo tão cheio de referências estéticas refinadas?

CL – Não dá para prever, não dá colocar dentro de uma redoma. É orgânico, é espiritual. Se eu fosse me desesperar com todas as derrocadas da vida, eu já teria abandonado a música ou a arte e me tornado um medíocre, para alimentar ainda mais mediocridade. As faixas de cada álbum foram compostas em um período relativamente curto de tempo, mais ou menos 6 meses. Compor é um ato solitário de coletividade espiritual, é pura explosão, é um orgasmo após o outro. É tiroteio. O que acredito que tenha te impressionado mais no trabalho é a liberdade que exala de cada faixa, porque eu não dou a mínima para o mercado, para a moda, para o lugar comum. Eu respeito o Tom Zé e adoro o Elomar, mas eu não sou eles. Cresci ouvindo Kiss e Wilson Simonal na mesma vitrola na sala. Não tinha como não mexer com minha cabeça. O importante sempre é canção, a melodia, o que te fala à alma. Tem que ir além de gostar, não gostar, entender ou não entender. Falo sério com humor e rio da desgraça. A música é a roupa de gala.

CCR – O amor é um tema recorrente em quase todas faixas. Você preserva o texto perspicaz de outros tempos, mas com outro viés. Elas têm relação com sua viagem de busca espiritual?

CL – Amor é tudo o que importa nessa vida. Não o amor apenas possessivo (Raul dizia que quem ama, liberta), sexual, mas o amor pela verdade. E o que é verdadeiro? O que é mentira? Para alguns é o status, as contas pagas no fim do mês, que significam paz de espírito. Isso seria o ideal, desde que viesse acompanhado de coisas mais importantes. Mas não dá. Não nasci para isso. Sou um kamikase, um deus destruidor, nunca estou satisfeito. O amor me sufoca, me dá esperança. Mas com humor, desce bem melhor.

CCR – O conceito "Oxymoro" surgiu de uma conversa sua com Wayne Kramer (MC5). O vermelho das roupas da banda vem da fase "comunista" dos New York Dolls. Em tempos de rock sem espírito rebelde e impregnado de teor excessivamente comercial, a Mustang poderia ser definida como um grito rocker independente contra a atitude colonizada, modista e acomodada do cenário do rock brazuca?

CL – O oxímoro é uma frase de duplo sentido, que se contradiz, como por exemplo: inteligência da polícia. O conceito do disco é esse: uma contradição que se contradiz. O novo e o velho, a verdade e a mentira, o amor e o amor. A maior dificuldade que as pessoas têm em entender o que faço, seja no Mustang ou na Usina é decifrar o enigma da esfinge. Nunca é apenas escutar música, longe disso, é um pacto de fogo. Chegar perto de algo incandescente, te queima. Ouço e vejo muita coisa boa, mas elas não me representam em nada. E cada um é um universo. Não tem como julgar quem quer que seja. O julgamento sempre é algo puído. O ideal é que a música e a arte em geral, devam ser atemporais, para que influências passageiras não interfiram no processo, para que possam se conectar sem ingerências. Ou gosta-se ou não. Ou entende-se ou não. Quantas vezes eu chorei defronte uma pintura e morri de tédio em um show de rock. Até perdi a conta.

CCR – Você já disse que considera a Mustang como punk´n´roll. O "Oxymoro" parece não caber nessa expressão, pois vai muito além. Você já citou em entrevistas New York Dolls, Beatles, Stooges, MC-5, Thin Lizzy, UFO, The Rods e Raven como sons que ainda fazem sua cabeça. Eu tenho 36 anos de idade, quase 25 mergulhados no portal mágico do rock, fui platéia do Dorsal Atlântica, não me considero um saudosista e me emocionei bastante ao ouvir o cd. Que tipo de público a Mustang tem alcançado?

CL – Vamos dizer que essa expressão se adequava melhor aos tempos iniciais da banda. Como a música que escrevo evolui mais rápido do que poderia imaginar, hoje não dá mais para rotular a banda: não é rock clássico, porque não é embolorado, não é mais punk porque toco progressivo, mod e psicodelia; tem o humor do glam mas também tem costeleta; é brasileiro mas é latino; sou um carioca paulista pernambucano baiano cearense gaúcho goiano de Manaus. Se nem sei quem sou, como você acha que podem me entender? Eu só tenho amor e suor para dar. Se for isso o que você procura, talvez sejamos bons amigos. A única coisa que posso te dizer é que sou um branco negro ou um buraco negro.

CCR – Você parece ser um cara muito espiritualizado, num sentido amplo do termo. Conte-nos como foi a experiência da participação do maestro Rotieh Ortseam na elaboração de arranjos?

CL – Bem, Rotieh é o codinome de um amigo maestro que tem uma grande relação de respeito e amizade conosco. Uma afinidade espiritual, de fato. Sempre que ele escreve os arranjos, os faz na hora, nunca ouvindo a música antes. É ou não é. E eu gosto assim.

CCR – O primeiro trabalho da Mustang, "Rock´n´roll Junkfood", lançado em 2002 pela gravadora carioca Old School Nice Lessons e sua versão em inglês tem um som mais básico do que o "Oxymoro"?

CL – Pode-se dizer que sim. Acrescentaria que o primeiro CD foi ousado à imagem e semelhança daquele momento, mas àquela época eu nunca imaginaria o que estaria escrevendo em apenas 3 anos. Evoluí muito como compositor, a banda mudou de formação, novos músicos acrescentam novas formas de tocar, a técnica de gravação se adequou mais à proposta que eu sonhava desde o início, mas não tinha ainda a percepção adequada para realizá-la. É muita coisa em tão pouco tempo. Praticamente 3 discos em 3 anos.

CCR – Como você define em termos sonoro e lírico as composições do próximo trabalho do grupo?

CL – O novo álbum foi lançado pela Monstro em janeiro de 2006 e se chama "Tá Tudo Mudando... Mas Nem Sempre Pra Melhor". O título também simboliza muito o conteúdo. Estava passando em uma rua do meu bairro, quando vi uma construção no meio de um parque. Aquela área ficou igual durante mais de 10 anos. Quando vi a mudança, essa foi a frase que falei... e que virou o título do novo trabalho. Cada disco não é apenas a fotografia de um momento, mas sim, mais uma estrela que surge no firmamento. É como o Cruzeiro do Sul com mais uma estrelinha. Desde o início do Mustang e da Usina, a idéia sempre foi fazer música orgânica. Só gravamos ao vivo, eu e o baterista ao mesmo tempo. Sempre ao vivo. Depois o baixista grava sem nunca ter ensaiado ou ouvido as músicas antes. E ele grava de prima, cria os arranjos, descasca, morde, assopra, consome, faz o baixo chorar ali no ato. É inacreditável. Pura organicidade. E eu passo, como produtor, horas no estúdio, equalizando o áudio para que ele soe como um vinil, nunca como um CD.

CCR – O que conhece do rock feito na atualidade no Nordeste e, mais especificamente, da Bahia? Existe alguma perspectiva de tocar por aqui?

CL – Tocar na Bahia sempre foi um sonho. Sou apaixonado por história, é essa foi a nossa velha capital, pelas barbas de Cabral! Nas vezes anteriores tivemos problemas com os produtores baianos, nem gosto de lembrar. Acredito que encontraremos propostas melhores para realizar esse sonho antigo, que é "pegar santo" na Bahia em frente de todo mundo. Isso para mim vai ser uma grande realização, falando sério. Só me conhecendo para ver que não estou brincando. Os baianos atuais que mais admiro são os Retrofoguetes, Dr. Cascadura e Nancyta, mas não conheço tantos artistas locais para fazer uma grande lista.

CCR – Uma das faixas desse CD disponível para download chamada "Geração Perdida" diz na letra que a "Bastilha será em Brasília". Como encara o atual cenário político nacional?

CL – Eu mantenho minhas convicções, mas em outro nível. De uma certa forma, o escândalo petista nos amadurece, nos faz ver que a verdade não pertence a nenhum lado. A história republicana no Brasil é uma história de golpes e contragolpes, por isso a menção à Bastilha.

CCR – A Mustang caminha cada vez mais na direção de um rock´n´roll básico e diversificado ao mesmo tempo, abarcando até nuances mods típicas de Small Faces e The Who? No caldeirão musical da banda cabe um arco-íris de influências abrangentes, como Secos e Molhados, Mutantes, passando pelo AC/DC, Sweet, Motorhead e Grand Funk, sem esquecer do glitter do T-Rex e do power pop do Big Star?

CL – E muito mais, meu caro Watson. Tudo o que couber que não tenha contra-indicação.

CCR – O "Oxymoro" tem um som bem orgânico, percebe-se isso principalmente quando se utiliza um headphone e ouve-se todos detalhes em cada faixa, o que me remeteu ao feeling dos vinis de hard rock, glitter rock e proto-punk. Ou seja, um som mais cru e natural. Como se deu o processo de gravação e como foram registradas especificamente as guitarras, que dão o tom ao lado dos teclados e moog?

CL – O Oxymoro, especificamente, foi gravado em ADAT (ainda uma fita) e mixado no Cubase, pois esse é o programa instalado no estúdio que gravo (Staccato no Rio). Depois da mixagem estéreo, reequalizo o disco pelo menos duas vezes. Sobre os detalhes, isso é um fato. Sou um apaixonado por LPs. Não tem jeito. Um vinil trazia paixão à bordo. Você era obrigado a virar de lado após 15 minutos, a relação da música com o ouvinte era mais próxima e emocionada. Como ter paixão por algo que se deu download e se apaga em um apertar de mouse? Nisso sou antiquado. Arte não tem nada a ver com quantidade, mas sim com perenidade. Adoro sons crus, som de guitarra no amplificador. Som de verdade. Não pretendo descobrir sonoridades artificiais e irreais. Um dia elas também encontrarão seu extertor, o ocaso. Peço aos interessados que tentem pelo menos uma vez, escutar o disco com fones de ouvido, para atingir uma dimensão mais aproximada do que eu tinha em mente, quando imaginei o disco em meus sonhos. Nunca o escutem em caixas de computador, pois estarão matando o trabalho por antecipação.

CCR – A música "Rosana Está?" é uma homenagem ao ex-paquito Rosana Star, que virou transformista. O que você quis passar como mensagem existencial ao abordar essa temática de forma tão criativa? Você quis enfocar a hipocrisia da sociedade em geral sobre o assunto?

CL – Estou glorificando o direito de ser quem você quiser ser. Isso não tem nada a ver com caráter. A pessoa tem o direito de ser feliz. Se vão te aceitar, é outro problema.

CCR – O "Rock´n´roll Junkfood" recebeu uma versão em inglês e o "Oxymoro" tem cinco músicas em inglês. Você prefere cantar em qual idioma? Como tem sido a recepção no circuito alternativo no Exterior?

CL – Eu escrevo para português. O inglês é mais um necessidade, em alguns casos, mas não me vejo escrevendo discos em inglês, a não ser que isso seja uma obrigação.

CCR – Percebe-se que você é um cara antenado, mas possuidor de um humor direto e refinado. O que lhe inspira para fazer letras tão cheias de referências culturais e tão simples ao mesmo tempo? Que livros e filmes fizeram e fazem sua cabeça?

CL – A lista é grande. Sempre fui muito cabeção em termos de literatura e cinema: Bunûel, Bergman, Glauber, Wood Allen, Capra. Já tive uma fase "pior", mas hoje até consigo assistir alguns filmes mais populares, desde que não me agridam muito. Sou um sonhador romântico, apaixonado pelos filmes norte-americanos preto e branco, sejam mudos, ou falados dos anos 30, 40, 50 etc. Adoro o Gordo e o Magro, Buster Keaton, Carmem Miranda, Charles Chaplin, Paulete Goddard, Louise Brooks, Greta Garbo. Em literatura não tenho muitas preferências, amo mais ler do que assistir filmes, mas devo citar Machado de Assis e Carlos Heitor Cony.

CCR – Pode deixar uma mensagem para os que conhecem a banda e os que ainda não tiveram a chance de conhecê-la.

CL – Que tal meditarmos juntos ao som do rock and roll? Ou fazermos sexo coletivo com um só?

http://www.monstrodiscos.com.br/

Ficha técnica
Oxymoro - 2004 – Monstro Discos
Gravado ao vivo no Estúdio Staccato (Rio de Janeiro) em ADAT em 16 canais e finalizado no Cubase entre Junho e Setembro de 2003. As vozes, alguns solos, violões e percussão foram acrescentados depois. Produção musical e executiva de Carlos Lopes. Gravado em inglês e português.

Lista de músicas
Todas composições de autoria de Carlos Lopes
1 – Muito além
2 – Rosana está?
3 – Saco cheio
4 – Tudo pelo dinheiro
5 – Contato
6 – Eu te amo
7 – Esse mundo é muito grande
8 – Gilmore Girls
9 – Sem mulher, sem dinheiro
10 – Caridade
11 – Caridade (instrumental)
12 – Cheiro de mijo guardado
13 – Fim de semana
14 – Amor Pansexual
15 – Ela lê a Bíblia
Versões em inglês
16 – Over the top (above the clouds)
17 – Puppet love
18 – All about money
19 – Weekend

Formação da Mustang (fase Oxymoro)
Carlos Lopes – Vocais e guitarra Américo Mortágua – bateria e percussão Wlad Vieira – Baixo
Plus Special Guest: Rotieh Ortseam - teclados

"A chama não pode se apagar" *

foto Bahia Rock

Messias, brincando de deus

Especial Clash City Rockers . Rock Soteropolitano Anos 90

por Ricardo Cury

* Frase de Cláudio "Escória" Moreira para Messias ao saber do incêndio que reduziu a pó o estúdio da brincando de deus.

Num inicio de tarde de um dia qualquer de 1999, Quinho, então baterista da brincando de deus, me liga e diz:

- Man, o estúdio pegou fogo.
- Hein?!
- O estúdio pegou fogo.
- Que estúdio, rapaz?
- O da banda.
- Que banda porra?
- Da brincando de deus, caralho.
- Como assim?
-Pegou fogo...incêndio.
-Caraaaaalho e aí?
-Queimou tudo.
-Tudo?
-Tudo.
-Tudo?!!
-Tudo caralho. Queimou tudo. Não sobrou nada, nem minha bateria, nem o baixo de Dalmo, a guitarra de Cezar, o amplificador...

Assim começava o segundo semestre de 1999 para a brincando de deus. O saldo final foi o pó de uma bateria Tama japonesa com dois tons e dois surdos, com todas suas ferragens e pratos, de um baixo Music Man de cinco cordas, uma guitarra Ária Pró II antiga e artesanal, um amplificador Marshall e uma espécie de baú com gravações inéditas e todo material de clipagem jornalística da banda, além de tudo isso, por o estúdio ser na casa da mãe do vocalista Messias, no Bonfim, queimou também o quarto ao lado, com centenas de livros do mesmo. Sem falar no susto da mãe de Messias.

-Como foi isso rapaz?
-Porra, fui pra lá tocar bateria e esqueci o ar ligado.

O ar-condicionado do estúdio era tão velho quanto a banda, ele esquentou e daí pro fogo pegar nas paredes encarpetadas foi o tempo do início de uma música dos Ramones: 1,2,3,4.

Antes disso a banda já vinha passando por momentos de incertezas, o horizonte estava escuro para todos os integrantes, a falta de perspectiva em Salvador, o marasmo cultural e intelectual da cidade, a vida pessoal de cada um, tudo parecia ir contra a banda e agora o incêndio, que não só teve prejuízos financeiros, esse foi o de menos, o pior foi o prejuízo psicológico, quem é músico e tem um instrumento sabe do que estou falando. Shows marcados tiveram de ser cancelados, pois a banda não tinha com o que tocar.

Alguém ainda comentou: -Viu, isso que dá usar esse nome.

Paralelo a tudo isso, acontecia um projeto chamado Emergentes da Madrugada. Projeto que tinha acabado de gravar o disco "Entre" do Cascadura e estava gravando o segundo do Dead Billies "Heartfelt Sessions". O projeto era uma parceria do Governo do estado com o templo sagrado da Axé Music, os estúdios WR, que emprestava suas dependências, e com o também sagrado produtor da Axé Music, vencedor de inúmeros discos-de-ouro assinando a produção de artistas como Chiclete com Banana, Luiz Caldas e Banda Reflexus, todos estes em início de carreira, Nestor Madrid.

Um belo dia, ao acaso, em pleno Mercado do Peixe, Messias encontrou com o produtor cultural Roberto Sant´anna que estava na direção musical do Emergentes da Madrugada. Roberto falou do projeto e disse que a brincando de deus estava na lista das bandas que eles estavam pensando em gravar. Messias então contou do incêndio, o que sensibilizou o produtor. Uma semana depois a brincando de deus foi convidada a iniciar a produção do seu terceiro disco.

-Mas como vamos gravar, não temos instrumentos?

Eu era o roadie da banda e antes disso, fã. Tomei pra mim a responsabilidade de arranjar os instrumentos. Liguei pra todos os músicos que conhecia e até um show beneficente foi discutido, mas não aconteceu. Muitos músicos emprestaram seus instrumentos. Luis Fernando, então baixista de Marcio Mello, era o principal alvo, pois sabia eu que ele tinha uns 4 baixos em casa. O problema era que o baixo que Dalmo queria usar era o mesmo que Luiz fernando usava nas sextas feiras com Marcio Mello no bar Alambique e como o nome do projeto diz, as gravações só aconteciam nas madrugadas, hora disponibilizada pelo estúdio. Assim, durante as gravações dos baixos, todas as sextas eu ia pra porta do Alambique ("baby eu não sei porque, toda sexta feira eu tenho que beber") esperar MM acabar pra poder levar o baixo de LF. Sexta feira, as gravações só começavam às 3:30 da manhã. Durante os outros dias era religiosamente de meia noite às seis da manhã.

Eu emprestei a bateria e mais uma galera emprestou as guitarras e violões, cujo o nome de todos estão creditados no encarte do disco. Ao invés de ter "brincando de deus usa guitarras Gibson, baixo Fender, baterias Premier..." tinha "brincando de deus usa guitarras de Daniel, Candido...baixo de Pedro, LF..." e por aí vai.

O primeiro dia de gravação não aconteceu. O estúdio dessa vez pegou água. Choveu tanto na cidade que faltou luz, as gravações começariam no dia seguinte. O projeto tinha um cronograma que devia ser milimetricamente respeitado. As baterias tinham que ser gravadas em duas semanas. No último dia de bateria, às 5:45 da manhã, ainda faltava uma música.

- Bora, grava logo, o taxímetro ta rodando.- dizia alguém.

Com essa pressão, Quinho não conseguiu gravar direito, a música sempre saia rápida demais e o tempo tinha se esgotado. A música ficou de fora. Ironicamente a musica se chamava Two Weeks From Here, que está registrada do segundo disco da banda, o ao vivo Running live on your mind: official bootleg.

Durante todo o tempo, Nestor Madrid e brincando de deus foram se conhecendo. As madrugadas eram entre paredes recheadas de discos-de-ouro e histórias obscuras da Axé Music, contadas por Nestor.

No meio disso tudo, os Dead Billies começavam a mixar o recém gravado disco, porém, a mixagem era feita no estúdio de cima e também por Nestor Madrid, que tinha que ficar subindo e descendo as escadas da WR.

-Nestor, cuidado pra você não se confundir e nosso disco não sair meio rockabilly, hein? dizia Messias.
-E cuidado pro nosso não sair meio triste, hein?
brincava Glauber.

Lembro de muitas vezes a gente ficar na porta do estúdio esperando alguns artistas acabarem. Um dia estávamos lá esperando, quando de repente saiu Ricardo Chaves. (Um é pouco). Todo mundo ficou se olhando, meio que querendo rir. Mas logo depois saiu Luiz Caldas, que em 1999 não estava como hoje, estava no completo ostracismo. (Dois é bom!). E não parou por aí, pois logo depois sai do estúdio Netinho. Aí era demais! Imagine os três juntos, na mesma sala...Todo mundo começou a rir.

Tivemos que trocar as vibrações do estúdio pra conseguir gravar. Messias sempre que chegava no estúdio fechava a porta, olhava pra gente e dizia: - Tô cheio de idéia.

Uma dessas idéias foi chamar todos os amigos pra fazer um coral na música "Mvsica", uma quase balada. Foram convidadas mais de 50 pessoas. Entre cervejas e outras bebidas, amigos, músicos de outras bandas e gente que nunca cantou na vida ficaram juntas num estúdio cantando Lala..lala...lala lala...lala lala...laaaaaa.

Alguns levavam a sério. Lembro de Fábio Cascadura tentar ensaiar o "lala lala" em diferentes tonalidades com outros que também levavam a sério. Tinha até gente que botava a mão no ouvido quando cantava dando todo um clima "We are the Word" ao coral. Por outro lado, tinha a galera dos "subtonados", que não conseguiam acertar nem uma nota. Não ficou um coral "gospel", mas ta lá. Baixinho, mas ta. Devidamente creditado no encarte como "Coro do rock".

E foi nesse clima que a banda gravou o homônimo terceiro disco. De uma hora pra outra, como uma música do Sonic Youth, tudo que estava amargo ficou doce. Atéuma matéria pro Fantástico com Maurício Kubrusly para o quadro Me Leva Brasil a banda gravou.

- Li sobre a banda e me interessei.- disse ele se referindo ao incêndio e a história do quase seminarista e roqueiro, Messias. E assim foi durante seis meses ininterruptos, incluindo a mixagem.

E em todos esses dias ficamos na companhia do porteiro da WR, que por outra ironia do destino se chama Roque. Ta lá até hoje. -É Roque mesmo?- perguntava eu. - Oxe, é Roque de verdade- dizia ele que abria todos os dias os portões da WR para a brincando de deus, Dead Billies e Dr.Cascadura.

Era o Roque comandando o Templo do Axé.

Cronicamente inviável

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Grafite em Bristol, por Banksy

por Marcos Rodrigues

Os que circulam pelas ruas de Salvador com certeza já notaram a proliferação de paredes pintadas com grafismos coloridos, ora fazendo o papel de educação ambiental ora enaltecendo a cultura folclórica baiana ora fazendo propaganda de eventos apoiados pelo governo, como a recente Fórmula Renault. Em quase todos os casos a 'logo' da Prefeitura Municipal vem adjacente co-assinando a 'intervenção' com o slogan: Prefeitura de participação popular. Corta.

Salvador segue sendo uma cidade muito peculiar, sobretudo no que diz respeito às trajetórias das chamadas manifestações populares. De blocos carnavalescos a alguns grupos de rap, dos ritmos eletrônicos de teclados japoneses fazendo base para o 'arrocha' aos grafismos nos muros da cidade. Onde em outras cidades as expressões dos subjugados socialmente criam tensões e forçam avanços nas correlações de força, na capital baiana uma 'cultura' de 'incorporação das diferenças' - promovida pelo campo do poder - apara arestas, arrefece ânimos e estabelece consensos.

Assim, temos por aqui líderes de blocos populares apoiando candidatos da situação, 'raps' como jingle de campanha política pela releição e, mais recentemente, servidores públicos 'grafiteiros' com carteira assinada ganhando salário, tickets e trabalhando cinco horas por dia. Para muitos são avanços incontestáveis, já que na verdade o que se deseja não é ser o 'outro', à margem, mas sim ter a inclusão na sociedade tal com ela é. Parece o paraíso da inclusão social, mas pelos números e indicadores sociais que são constantemente ventilados, pela imprensa que foge às amarras do poder local, está difícil enxergar onde as mudanças estão operando para além do ganho temporário de alguns.

As cordas que durante o carnaval separam associados de simples foliões continuam apinhadas de mãos de não-inclusos, bem como a fila que se forma a partir das 10h da manhã em frente ao restaurante popular para se ter um prato de comida a R$1, bem como as sinaleiras da cidade e as vagas de estacionamento nas ruas e a multidão de ambulantes e etc etc etc

Ficando só na questão dos 'grafites', já que a totalidade do nosso quadro social continua sendo ardorosamente investigada nas cadeiras do Campus de São Lázaro, é de causar espécie até onde o avalanche do discurso politicamente correto já está fazendo vítimas. O que nasceu em maio de 68 nas ruas de Paris como meio de contestação em famosos slogans, ganhou autonomia como arte urbana nos vagões dos metrôs de Nova Iorque no início dos anos 70, se espalhou pelo mundo na urgência punk da virada dos 80 (Miguel Cordeiro em Salvador incluso) e se consolidou como parte do tripé da cultura hiphop (os outros dois são o rap e a breakdance) em cidades como Marseille, São Paulo, Cairo etc, vira na Salvador contemporânea, em colaboração com a Escola de Belas Artes da UFBa, pastiche de propaganda oficial de governo.

Mesmo que fossem, ainda que repugnável, só pelo aspecto 'decorativo', essa pintura mural (não é mais do que isso) que se espalha pela cidade carece de inventividade, originalidade e mesmo qualidades técnicas. Os traços são infantis e primários, os temas 'chapa-branca', bobinhos, não acrescentam nada à vida de ninguém, a não ser os R$400 no fim do mês para "ex-pichadores" que agora andam felizes por não correrem mais da polícia. São agora 'grafiteiros do bem'. O que a pobreza nos faz.

O grafite é comunicação de guerrilha. Tem que ser necessariamente não autorizado. Tem que ser imprevisível, tanto nos temas quanto nos locais onde se interfere. Tem que gritar e não pedir licença. Falar de amor, de ódio, de vida e de morte, fazer pensar. Trazer uma poética viva para as ruas e não a morbidez dos murais chapa-branca. Grafite tem que ser um crime. Ou não é grafite.

A melhor banda de Nova York...

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Miguelito em New York

por Miguel Cordeiro

Nova York sempre foi uma festa. Capital do mundo e seu maior centro cultural desde a chegada dos artistas modernistas e de vanguarda que lá se estabeleceram a partir dos anos 1930 deixando para trás as cidades européias devido a ameaça nazista. Marcel Duchamp, Salvador Dali, André Breton, Mondrian, Max Ernst e muitos outros foram viver em Nova York.

E se você quiser ir para uma cidade onde o rock´n´roll faz dela a sua morada certamente Nova York é o destino mais que apropriado. É normal você andar pelas ruas desta incrível metrópole e ouvir saindo de algum lugar uma música do The Who, ou de um táxi uma do Bruce Springsteen, ou de uma cafeteria uma canção daquela banda underground que é a sensação dos últimos quinze minutos.

Nos quase dois anos em que morei em Nova York, no início dos anos 80, todo dia era dia de rock! De segunda a segunda tinha show para se ver, desde o mais baratinho até o que o meu bolso comportava. Das 9 da manhã até às 5 da tarde eu trabalhava fazendo vários serviços de peão e a grana ganha era gasta no aluguel de um quitinete minúsculo no Greenwich Village (East Side) dividido com uma namorada-esposa brasileira, poupava alguns dólares para não voltar pro Brasil sem nada no bolso, ia de vez em quando a um restaurante, e, no mais, muito cinema e show de rock´n´roll quase todo dia.

Toda terça-feira no R.T. Firefly, um inferninho perto de onde eu morava, se apresentava uma banda que ao vê-la pela primeira vez passei a gostar muito. A banda se chamava Soviet Sex. Eles tinham um público cativo que a partir das dez da noite começava a formar uma fila do lado de fora esperando a hora de abrir as portas. Uma noite estava lá na fila o Robert Quine que tocava com o Lou Reed, outra noite o grafiteiro-artista plástico Basquiat com o seu séqüito e semanas depois, também na fila, vi Lee Ranaldo & Kim Gordon do Sonic Youth abraçados e dividindo uma cerveja .

Sim, o Soviet Sex era uma banda muito bacana. Tocava uma espécie de punk rock com melodias interessantíssimas, boas letras, formado por cinco integrantes e no vocal uma linda garota de cabelo curtinho e voz maravilhosa.

Depois de um tempo eles passaram a se apresentar em outros lugares e o público os seguia onde quer que tocassem. E ir aos shows do Soviet Sex passou a ser um dos melhores programas musicais naquelas noites frias do inverno novaiorquino e como eu era um freqüentador assíduo deu para confirmar que a banda era mesmo do caralho. Eles tocavam bem, as canções marcavam fundo na platéia, tinham carisma e presença de palco, deixando o público alvoroçado e sempre pronto a interagir com eles nos palcos do Village.

A linda garota vocalista era espirituosa e não deixava pedra sobre pedra quando algum engraçadinho fazia piada sobre a sua condição de jovenzinha ou sex simbol. Ela devolvia a piada na hora e a banda emendava um petardo sonoro levando a platéia ao delírio. Era comum depois do show, no balcão do bar, ouvir comentários que o Soviet Sex era a melhor banda de Nova York.

Acho que de tanto assistir o Soviet Sex tornei-me um rosto familiar a seus integrantes e como eles moravam ali pelo Village sempre os via passando pelas ruas ou em compras nas delicatessens. Até o dia em que eu fazia um breakfast no Veselka Café e eis que a vocalista do Soviet Sex entra, procura um lugar disponível em meio ao ambiente lotado, pede licença e senta na minha mesa. Nos apresentamos. Seu nome, Anne. Trocamos algumas palavras, falei sobre a banda dela e ela disse já ter me visto nos shows. Digo que sou do Brasil. - Brazil. Coffee, you know?
O papo estava ficando animado, mas prá mim não dava... Eu tinha ido tomar café da manhã e minha namorada-esposa me esperava no apartamento, pois estava separando umas roupas que eu ia levar para a lavanderia e depois eu ainda tinha de pintar um loft lá do outro lado da cidade. E eu, claro, não podia me dar ao luxo de abrir mão daquela grana.

Continuei indo aos shows do Soviet Sex e após aquele breakfast eu me sentia na condição do conhecido brasileiro da vocalista Anne, que sempre que cruzava por mim pelas ruas do Village soltava um aceno e um caloroso hello! Voltei para o Brasil e nunca mais ouvi falar sobre o Soviet Sex, aquela que por algum tempo foi a melhor banda de Nova York.