Um brinde ao velho safado

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por Márcio Martinez

“– O QUE, SEU CHUPADOR DE PAU! – ela gritou.
Vi o sobrancelhudo saltar o balcão. Bom truque para um cara do seu tamanho. Tomei meu drinque e me levantei para enfrentá-lo. Me desviei do seu direito e mandei-lhe o joelho nas partes pudendas. Ele caiu, rolando no chão. Dei-lhe um pontapé na bunda e saí andando pelo Sunset Boulevard.

Minha sorte nos bares ia de mal a pior.”

(Charles Bukowski - trecho do livro Pulp)

Estavam na Civilização e a colega de trabalho da minha ex namorada também queria comprar um presente para seu homem. Ela então tomou este livro das mãos de minha ex e disse, “ah, esse é legal? Deixe eu ver, que fulano também gosta de livros”, toda sorridente... Drica me contou depois, às gargalhadas, como a expressão no rosto da colega foi se alterando aos poucos e se transformando num misto de surpresa e decepção quando terminou de ler este trecho na contra capa do último livro e primeiro lançamento póstumo do Dirt Old Man, há dez anos. “Ah, Márcio gosta desse ‘tipo’ de livro é?”

A vaca pensou o quê? Que seria alguma publicação ‘tipo’ auto-ajuda? Um romance mela-cueca de Sidney Sheldon? Ou mesmo texto pornográfico? A verdade é que a tal ex também não conhecia nem um pouco, nada, sobre o autor que escolhera para me presentear e só o fizera (dedicatória toda romântica e fofinha, contrastando com o conteúdo), porque eu havia visto este lançamento dias antes, demonstrado interesse em adquiri-lo e ela quis me surpreender, antecipando-se. Muito obrigado.

Tarefa ingrata essa. Prazerosa, é certo, mas ingrata. Escrever sobre quem a gente gosta e aprendeu a respeitar depois de compreender o que há por trás de rígida muralha de intolerância com o mundo que o cerca deveria ser fácil, agradável, mas não é. Quando se trata especificamente daquela MOSCA DE BAR, o Santo Padroeiro dos bêbados e fracassados, eu me pergunto se há moral (ou falta de) suficiente em mim para tanto. Vidinha ordinária de classe média, tudo na mão dentro de nossas limitações, a cortina de um falido sistema sócio-econômico jogando sua densa sombra em meu lar, mas por aqui todos cordeirinhos mansos, satisfeitos e incapazes de contestar tais limitações; por tudo isso e algo mais, o esqueleto do escritor-padroeiro deve estar chacoalhando nesse momento, enfurecido e esbravejante, dentadura trincando, louco pra me cuspir na cara: “SEU FILHO DA PUTA, VAI TOMAR NO CÚ QUE VOCÊ NÃO SABE DE NADA!”.

Putz, depois dessa desliguei o computador e fui pra casa. Outro dia eu tentaria continuar...

Bom e Velho Buck, andando pelas calçadas da Cidade dos Anjos, garrafa de vinho barato na mão, o DEMÔNIO em seu encalço. Maior algoz de si mesmo, era um verdadeiro proscrito do American Way of Life. Na posição de observador, era cada vez mais claro para ele que o sonho americano estava jogado bem no fundo de uma lata de lixo: “A América é uma prostituta de 150 quilos, um metro e meio de altura, que peida, uiva e destroça a cama quando goza”. Definitivamente, não posso deixar de amar um escroto que escreve um troço destes. Isso é poesia erudita pra mim.

Nascido na Alemanha em 1920, pai de ascendência alemã, sargento do exército americano e mãe alemã, migraram para os EUA quando tinha 3 anos. Charles Bukowski mostrava uma personalidade retraída desde a infância, odiava a figura ultra autoritária do pai e a indiferença da mãe e acumulou traumas pesados que viriam a criar a espessa e impenetrável casca anti-humanidade em que viveria ao longo do tempo. Para um atormentado disléxico, ainda muito jovem as coisas pioraram: Médicos examinaram seu rosto cheio de erupções pustulentas e as classificaram como acne vulgaris, de um tipo raro, que o desfigurava terrivelmente. Você encontra as dificuldades pelas quais passou na infância e juventude em MISTO QUENTE, romance que, como muitos outros textos seus, era meio que autobiográfico, já que se utilizava de sua própria experiência de vida como melhor matéria-prima da atividade que escolheu como válvula de escape do seu atribulado cotidiano.

Em sua vida, às vezes perdia tempo valioso com pessoas que não se importavam se ele estava vivo ou morto. Aqui o Rock’n’Roll que tanto detestava cai feito uma luva para definir alguns momentos de seu dia-a-dia, via The Smiths. Sua paixão era a música clássica que ele ouvia diariamente quando não passava as noites numa cadeia fétida ou num hospital de indigentes vomitando sangue devido aos excessos que atacavam seu estômago ulcerado. Segundo o próprio Bukowski, escrevia para não entrar em processo de completa loucura. As peças orquestradas eram a trilha sonora. O Adágio em Sol menor de Albinoni desliza pelos fones de ouvido enquanto escrevo. Uma peça dramática para um momento dramático. E é curta, em torno de sete minutos. Mas a vida leva o tempo de um cigarro, se pensarmos bem. Mahler, Handel, Beethoven... Zweeeeiiing, Shkrieeeeeek, tsoiiiiiiing... Bosta de rádio que não sintoniza direito!

Publicou o primeiro conto em 1944, aos 24 anos e começou a escrever poemas aos 35.

Bom e Velho Chinaski, coitado desse seu alter ego, junto a seu anjo da guarda, acumularam seqüelas de um modo de vida mortífero. “Maldita raça humana”, não se considerava um ser humano também? Curioso como sua inadaptação a este mundo o fazia parecer um alienígena. Henry Chinaski passeou pela maioria de suas histórias, fossem romances ou contos, nos guiando tropegamente, nos forçando a atravessar as perigosas ruas de seu universo distorcido, nas manhãs de névoa poluída de Los Angeles, em meio a fantasias alcoólicas e delirium tremens.

Henry era o nome do seu pai e talvez o usasse como alter ego numa tentativa oculta de fazê-lo sofrer e numa tentativa desesperada de expiar seus traumas.

O melhor que já li dele é MULHERES, o próprio título já informa do que se trata: suas desventuras, amores fracassados, noites mormacentas, relacionamentos rodeados em massas de sujeira e lama, complicados mas muitas vezes o trágico virando cômico e arrancando boas (às vezes nervosas) risadas do leitor. CARTAS NA RUA trata do emprego em que durou mais tempo, nos correios, período em que produziu muito e ganhou horríveis dores nas costas em dez anos separando cartas e andando pelas ruas para entregá-las. Duas ótimas coletâneas de contos, pra quem quiser começar devagar (mas cuidado!) são CRÔNICA DE UM AMOR LOUCO, título de um filme do diretor Marco Ferreri sobre as doideiras e devaneios de parte de sua vida como escritor outsider e FABULÁRIO GERAL DO DELÍRIO COTIDIANO, juntos se complementam. FACTOTUM já trata dos diversos empregos nos quais nunca conseguia durar mais de dois meses, às vezes uma semana, quiçá 1 dia! Tem HOLLYWOOD, um dos últimos ainda em vida, sobre as filmagens de um roteiro seu conseguido a muito custo ($), dirigido por Barbet Schroeder e protagonizado por Mickey Rourke e Faye Dunnaway. “A imortalidade é uma estúpida invenção dos homens”, escreveu num diário pouco antes de morrer e que foi lançado postumamente sob o título “O CAPITÃO SAIU PARA ALMOÇAR E OS MARINHEIROS TOMARAM CONTA DO NAVIO”. Concordo e ainda digo:

A eternidade também tem seu limite, que é o da própria vida. Reconhecimentos e homenagens póstumas o caralho, isso só interessa a quem está vivo.

Bom e Velho Safado, língua ferina e afiada, mas de corte irregular, seria mais confiável mamãe deixar sua filha sair com os Rolling Stones numa noitada. Escritor maldito, “não é mártir, nem nenhum anjo caído: quando cai, cai atirando, sem autopiedade”. Podia detonar facilmente qualquer incauto em platéias quando fazia suas leituras em meio à bebericadas nervosas na sua garrafa de vinho e aos desordeiros, berrando insultos, dizia calmamente: “Vocês ainda não voltaram pra casa, para a mamãe? Ela preparou uma mamadeira de leite quentinho para vocês”. Porra, botava a cabeça entre as pernas e procurava um buraco para enterrá-la mas ali é que eu não ficava mais. Viciado nos “cavalinhos” vivia rodando pela Freeway em direção ao hipódromo, para perder ou ganhar nas apostas. Perdia mais do que ganhava. “Existimos por acaso entre as percentagens, temporariamente”, então por que perdemos tanto tempo? “A simplicidade é essencial”, dizia.

Mas, apesar de tudo, de seus traumas, amores fracassados, prisões inesperadas, loucas desventuras e fantasias alcoólicas, conseguia também ser lírico e esperançoso. Em algum lugar, nos recônditos da medonha alma humana, no fundo, no fundo, ainda parecia enxergar uma possível salvação em meio ao caos e isso se justifica em sua indisfarçável ternura pelos perdedores e excluídos.

Do último lançamento de Charles Bukowski, ESSA LOUCURA ROUBADA QUE NÃO DESEJO A NINGUÉM A NÃO SER A MIM MESMO AMÉM, um livro de poemas, também no Brasil (trecho):

Isto não é um poema
Poemas são um tédio
Eles te fazem
Dormir

Estas palavras te arrastam
Para uma nova
Loucura

Você foi abençoado
Você foi atirado
Num
Lugar que cega
De tanta luz

Você já pode morrer agora
Você já pode morrer do jeito
Eu as pessoas deveriam
Morrer:

Esplêndidas,
Vitoriosas,
Ouvindo a música,
Sendo a música,
Rugindo,
Rugindo,
Rugindo.

Ruja bem alto, velho desgraçado, arrase comigo, arranque minha alma, vomite nela sangue e impropérios e jogue meus restos em sua sarjeta de indignação!

EU MEREÇO.