Northern Soul

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Gloria Jones

por Marcos Rodrigues

Desde o fim da Segunda Guerra, o mundo não parou de produzir subculturas jovens. Sinal dos tempos, já anunciando os novos rumos da era moderna. Paris, 1946, à margem esquerda do Sena. Poetas, escritores, artistas, niilistas, a juventude sem futuro enfim, reunidas em torno do Existencialismo de Sartre, Beauvoir, Camus. Inglaterra à mesma época tinha os Angry Young Men, um movimento intelectual de esquerda, com peças, filmes e livros tratando da classe trabalhadora. Nos Estados Unidos, a Universidade de Columbia; o Village, em New York e a zona boêmia de São Francisco eram o cenário onde circulavam alucinados os Beatniks, on the road. Caronas, meditação, benzedrina e cool jazz. "kerouac dizia que, quando Miles Davis soprava seu trumpete era como longas sentenças escritas por Proust" (Bivar). E o Brasil, via Rio de Janeiro, que, sejamos honestos, era na década de 50 "o Brasil", com a Bossa Nova e cantinhos e violões, Nara Leão e todas uma turma bem nascida que girava em torno de Copacabana. Vieram depois o hippies, os freaks, os punks e o resto vocês sabem.

No meio de toda a movimentação dos anos 60, Beatles inclusos, surgiu na Inglaterra uma das mais inusitadas cenas da cultura pop. Falo dos Mods, abreviação de Modernists, tema que já foi abordado aqui no Clash City Rockers há algum tempo. Como vocês sabem, os Mods originalmente gostavam mesmo era de música negra norteamericana; modern jazz, rythm'n'blues e soul music. E juntavam todo o seu suado dinheirinho para incrementar suas Lambrettas e Vespas, comprar sapatos italianos e camisas Ben Shermann e sair na noite para dançar em clubes como The Twisted Wheel, The Golden Torch e, talvez o mais famoso deles, The Wigan Casino.

A disputa dos djs por tocar sons desconhecidos levou muitos deles aos Estados Unidos, para fuçar novidades da Soul Music que não chegavam na Ilha de Elizabeth. Deu-se o efeito colateral. No meio dos discos, entre clássicos da Motown, como Temptations, Supremes e Marvin Gaye, muitos singles de selos obscuros, como Shrine, também atravessaram o Atlântico. Pequenos selos desconhecidos inclusive nos EUA. Uma série de cantores, cantoras e grupos vocais com pouca expressividade comercial viraram febre nos clubes de Londres e muitos iam ver determinado dj porque só ele tinha 'aquela' música. Nasce uma cultura underground, com seus ritos e códigos e singles que viraram peças de colecionadores - a maioria daqueles pequenos selos não existem mais - e que construiram a aura e o charme do movimento mod. Uma verdadeira irmandade que deu forma a uma cena que vem se espalhando pelo mundo nas últimas três décadas. Primeiro norte da Europa e Itália, depois França e Espanha e, mais recentemente, com o advento da net retorna aos Estados Unidos, via Califórnia, chega a São Paulo, Curitiba e...Salvador. Ãh?! Explico abaixo.

Mas afinal, o que vem a ser Northern Soul? No final da década de 60, o jornalista Dave Godin montou uma loja de discos para vender essa música negra norteamericana, inclusive aqueles discos de selos pouco conhecidos. Entre os frequentadores da loja, Godim percebeu que o pessoal que chegava do norte da Inglaterra, sobretudo jogadores de futebol em passagem por Londres, procurava sempre por grooves mais orientados para a pista, menos redondos e rebuscados que os sons da Motown e com uma certa atitude, que é difícil de explicar. É aquela coisa, tem que ouvir. Assim para facilitar a vida de quem entrava na loja procurando esses sons específicos, Godim separou uma seção e escreveu na plaquinha 'Northern Soul'. Simples assim. É sério.

Mais do que um gênero específico Northern Soul diz respeito a uma cena e certo modo de vida. Música de qualidade, vocais incríveis, músicos sensacionais e um groove que melhora o seu dia. Assim ilustres desconhecidos como Bettye Lavette, Eddie Jefferson, Gloria Jones, Mose Dillard e dezenas de outros viraram pop stars para uma comunidade bem informada e que gira pelo mundo em torno de clubes e djs (de verdade) e cultura mod.

E o que Salvador tem a ver com isso? Bom, posso adiantar em primeira mão, para os leitores deste prestigioso blog, que o Miss Modular passa a abrir todos os domingos, a partir do final de novembro para as chamadas Soul Sundays. Motown, Classic & Northern Soul e Mod Jazz. Uma prévia do que virá pode ser ouvida no programa 16 Toneladas, da Rádio Educadora, no próxima dia 09. Por enquanto fiquem com a maravilhosa Gloria Jones (que, diga-se de passagem, era a mulher de Marc Bolan) no link ai ao lado.

Uma penetra no Clube do Bolinha

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por Miguel Cordeiro

Sempre que voce lê, lembra ou conversa sobre os primórdios do rock´n´roll lá nos idos da década de 1950, a primeira imagem que surge é a de um bando de marmanjos ora remexendo a pélvis, ora empunhando guitarras endiabradas, ora martelando as teclas do piano ou berrando a plenos pulmões “uop bop loom uop lop bam bum”. Mas não era só isto. No meio daquele universo dominado por testosterona existia uma garota fora de série chamada Wanda Jackson. Nascida em 1937 no estado de Oklahoma (USA) e com o apoio do pai músico, Wanda deu os primeiros passos no piano, no violão e participando de corais gospel da igreja local. Entre 1954 e 1956 lançou alguns compactos como intérprete de canções country de apelo romântico. Mas, ao excursionar com Elvis Presley que, impressionado pela sua voz e por outros atributos, a incentivou a cantar o rock´n´roll e Wanda Jackson seguiu os conselhos do Rei e decidiu ser intérprete daquela música animalesca e libidinosa.

Em 1956 lançou seu primeiro álbum já dentro deste estilo e começou a se destacar no meio dos marmanjos, o que gerou comentários elogiosos pela sua verve artística, sua bela voz e também comentários maldosos de que ela seria uma garota selvagem... Mas aquela era uma época em que o mundo era mesmo muito machista e as mudanças comportamentais ainda estavam por vir; e, afinal de contas, o rock´n´roll era um palco basicamente restrito aos homens.

Wanda Jackson era uma garota deslumbrante, uma pioneira em todos os sentidos. Peitou, literalmente, as regras vigentes e foi a primeira performer da musica popular a usar maquiagem marcante, roupas sexy e provocantes e ter postura de palco incendiária. Uma cantora versátil, de voz privilegiada que nas suas interpretações lhe permitia alternar suavidade, doçura e grunhidos rascantes.

As versões de Wanda para os hinos do rock´n´roll são simplesmente sensacionais. Para confirmar isto basta ouvi-la cantando Long tall Sally e Slippin´ and slidin´ (Little Richard), Brown eyed handsome man (Chuck Berry), My baby left me (Arthur Crudup), Kansas City, Riot in cell block # 9. Outras canções ela própria popularizou: Mean mean man, Let´s have a party e Fujyama mama.

Apesar de fazer sucesso ela nunca foi um fenômeno de vendas, mas entre 1956 e 1962 Wanda Furacão reinou sozinha como a mais legítima representante feminina do rock´n´roll. Devido aos preconceitos e sendo uma mulher à frente do seu tempo, ela não teve um apoio mais incisivo dos produtores e das gravadoras e preferiu redirecionar sua carreira para a musica country. Abraçou a causa cristã mas nas excursões que sempre faz pela América e Europa (onde tem um público fiel), o fogo profano do rock´n´roll arde em altas labaredas.

Reverenciada pelo Cramps, Brian Setzer, Elvis Costelo, Jack White e muitos outros o exemplo de Wanda Jackson repete a lenda que diz que os pioneiros pagam um preço muito alto pela sua originalidade, porém o reconhecimento torna-se cada vez maior à medida que o tempo passa. Entretanto, a maior ousadia de Wanda Jackson foi participar do Clube do Bolinha e se recusar a só bancar o papel da garotinha que faz os serviços domésticos. Ela foi pro centro de decisões, subiu no palco e se fez, com todos os méritos, a Rainha do Rockabilly.

O homem que inventou a Soul Music

photo Wally Seawell


por Nei Bahia

Confesso que tem algumas cidade dos Estados Unidos em que queria beber a água, respirar o ar ou nadar do rio das redondezas; tudo isso pra tentar entender o porque num mesmo lugar nascerem Litlle Richard e Otis Redding; a pequena Macon; ou Clarksdale, Mississippi, onde nasceram Muddy Waters, John Lee Hooker e o meu personagem, Sam Cooke. Não conhece?

Não é problema, mas o que ele começou, você não só conhece como dançou e ainda dança, assoviou e ainda vai assoviar muito, canta e cantou muitas vezes.

Sim, Ray Charles já tinha arrombado a porta da Igreja e junto com um turco chamado Ahmet Ertegun colocado de cabeça pra baixo as paradas americanas, o filho do Pastor Charles Cooke usou a sutileza que trouxe dos Soul Stirrers, (grupo de gospel), e partindo de seu primeiro single "You send me" de 1957, deu inicio a uma carreira onde ele não respeitou as barreiras do mercado de discos e das rádios, agradando tanto seu antigo público gospel(que o ouvia escondido dos pastores e ministros da igreja), como um público negro mais moderno, chegando até ao público médio, onde Frank Sinatra era imbatível. Sim, Sinatra, "Old blue eyes" para os íntimos, que confessou uma vez só ficar tranquilo quando ouvia Sam Cooke depois que lembrava que ele não era branco...(que mundo f...).

Bastaram 2 anos no mercado como cantor profano, para ele trocar a pequena Specialty pela gigante RCA, onde gravava um certo Elvis, e ali ser talvez um dos inventores do LP como obra e não como coletânea de singles. Poderia ali permanecer, mais parte para mostrar o modelo que a Motown e Berry Gordy iriam seguir: música negra, pop e perfeita, imune às loucuras da sociedade hipócrita americana. Abre seu selo, a SAR, e grava tanto música sagrada quanto popular.

Muito antes de James Brown pedir pra os negros gritarem alto "...sou negro e orgulhoso disso, Sam faz "A Change Is Gonna Come", e deixa perplexos muitos que nunca pensariam que aquele negro que se vestia e se portava como Tony Bennet pudesse tentar algo claramente revolucionário. Otis Redding foi mais influente como cantor, Al Green ainda convive com maestria única entre o gospel e o soul, Marvin Gaye foi o mais lascivo de todos, Michael Jackson (sim, ele mesmo) teve a chance de ser o maior de todos e não quis, James Brown o maior em cima do palco, mais Sam é o mais perfeito cantor da música negra americana.

Pra terminar, queria deixar um conselho: não passe mais um segundo sem ouvir "Live at The Harlem Square Club - 1963", disco ao vivo lançado no fim da década de 80, que mostra todo o poder de Sam. Acompanhado da banda do saxofonista King Curtis, esse disco tem um poder quase sobrenatural de fazer pessoas felizes; do início com "Feel it" (perfeito título) e "Chai chang" (dúvido que você não acompanhe o refrão quando estiver ouvindo), até o fim com "Having a Party" (canção usada por Rod stewart p´ra terminar seus shows durante toda a sua carreira solo, sim, eu disse TODOS os shows dele em mais de 30 anos), passando pela românticas (no bom sentido) "Cupid" e "It's All Right/For Sentimental Reasons" que praticamente fazem você ouvir as calcinhas voando em direção ao palco.

Você acha exagero? Pode acreditar, eu não tenho capacidade de descrever, ouça!

Conflito de gerações

ilustração sobre foto M.Rodrigues


por Miguel Cordeiro

Quando um filho está para nascer os pais se perdem em longas discussões sobre qual será o nome que o rebento receberá. E o que leva os pais a batizar o seu filhote com o surpreendente nome de Creedence Clearwater Revival? Pois este é o caso verídico de um pai paulista que deu este nome ao seu filho, e, este, anos depois, veio a se destacar como um craque do futebol. E quando um pai constata que o filho corre numa direção oposta àquela que o pai imaginara ao dar aquele determinado nome ao filhote? Pois não é que o craque Creedence Clearwater Revival gosta de pagode? Logo o pagode, um dos inimigos mortais do rock´n´roll, ritmo que serviu de inspiração para o seu próprio nome?!!


É o tal do conflito de gerações que quase sempre leva o filho a fazer e gostar de tudo que seja contrário ao que os pais fazem e gostam. Isto me lembra do exemplo de um amigo que se viu nesta situação. O pai cresceu ouvindo rock e guardava com todo carinho e cuidado os seus discos de vinil e seus cds, acalentando um sonho que os seus filhos tivessem ao alcance das mãos aquele acervo de preciosidades.Quando o seu primeiro filho nasceu, ele escolheu um nome e fazia questão de explicar o seu significado para os amigos, e, ao encontrá-lo numa rua da cidade, ele me falou que o nome do seu herdeiro era Joe, em homenagem a Joe Strummer, da banda The Clash. Logo imaginei o garotinho sendo ninado ao som de Guns of Brixton ou de Spanish Bombs e achava que o futuro do rock estava preservado. Mas aos poucos o conflito de gerações se estabeleceu naquela célula familiar e o nosso Joe cresceu gostando de rock, mas de um rock que o zeloso papai não tinha nenhuma afinidade.


Papai mostrava ao filhote os clássicos do T. Rex e o filhote ficava entediado, dava as costas e ia pro seu quarto ouvir o System of a down. Papai mostrava os riffs cristalinos e econômicos do mestre B.B. King mas o filhote preferia a avalanche de notas do Malmsteen. Papai apresentava o rock pesado do Foghat mas o filhote achava que aquilo era pop e caía de cabeça no Motley Crue. Papai botava para tocar The Cure, Echo & The Bunnymen, o filhote dizia que aquilo era rock de veado e ia ouvir o rock de macho de Rob Halford e seus Judas Priest. Papai apresentou o rock de Brasilia e suas roupas pretas mas o filhote aprendeu com os coleguinhas a gostar das bandas de Recife com suas roupas coloridas. Papai sentia na alma os gemidos de Otis Redding e o filhote sentia nos nervos o blá blá blá dos rappers. Papai pulava enraivecido com o Ira e o filhote pulava conformado com o hardcore melódico. Filhote apareceu com um cd do macabro Marilyn Manson e papai disse que Alice Cooper já tinha feito aquilo e filhote ficou chateado. Papai mostrou o som da poesia nordestina apocalíptica de Zé Ramalho mas um dia flagrou o filhote meio estranho, vestido numa bata branca e escutando escondido o som da poesia parnasiana do Cordel do Fogo Encantado.


Por fim, e depois de muitas brigas homéricas, papai encheu o saco de querer fazer a cabeça do filhote e decidiram ir cada um para o seu lado.Papai tomou para si todos os discos e cds da sua própria coleção e o filhote armazenou no seu computador os sons do seu universo juvenil. Às vezes, num dia iluminado e rodando de carro pela cidade os dois se encontravam, viajandões, ao som de Jimi Hendrix ou do Zeppelin mas aqueles eram momentos cada vez mais raros. E a vida seguia seu rumo.


Eis que, numa noite, a familia se preparava para um jantar de aniversário de um velho amigo da familia. Papai aproveitava o momento e ouvia um album do Crosby Stills Nash & Young. O filhote em seu quarto ouvia Marcelo D2, aumenta o volume abafando a música que papai escuta na sala. Papai dá um grito de ordem mandando baixar o som e este grita de volta dizendo a mesma coisa. Tem início uma forte discussão e mamãe intercede ordenando que os dois desliguem os seus equipamentos.


Um silêncio apreensivo toma conta do lar. Papai já está pronto e reclama do atraso da mamãe e da filhota que, indecisas, conversam sobre qual roupa devem vestir. Papai se impacienta, dá pressa à familia e pega o jornal para ler. Só notícias ruins. No caderno 2 mais uma entrevista com respostas indecifráveis do ministro Gilberto Gil, no caderno de política só falcatruas, corrupção e roubalheiras envolvendo, justamente, o governo que papai ajudou a eleger com o seu voto. Papai fica revoltado mas no seu lar não tem com quem dividir a sua indignação. Lembra que o filhote é um alienado político, alheio a realidade do país. Mamãe e filhota não ligam para isso e vivem no universo das revistas de celebridades e das novelas da televisão.


Finalmente, a familia está pronta para sair e quando o filhote surge do quarto com sua indumentária padrão - o boné virado, o tênis pé de pato, a calça arriada e uma T-shirt extra-extra-grande do Linkin Park, aquilo soou como uma provocação para o papai. Ele resmunga, reprova a roupa do filhote, reclama da calça arriada, da cueca aparecendo e diz que a roupa é ridícula. O filhote responde a altura: ridícula é a roupa do papai com aquela calça jeans apertadinha de cantor sertanejo. Foi a gota dágua. Papai ficou furioso, começa a berrar transtornado e, descontrolado, atira o seu celular contra a parede que se espatifa em mil pedaços. E começa a chorar convulsivamente. Amaldiçoa a vida familiar e escancara o abismo profundo que os separa. Mamãe desmorona e cai em prantos. Filhote volta pro seu quarto. Filhota corre e se tranca no seu quarto. A ida pro jantar de aniversário foi abortada. A familia passou dias sem trocar palavras entre si. Uma atmosfera lúgubre tomou conta daquele lar. Os equipamentos de som ficaram mudos. E, a partir daquela data, o rock´n´roll morreu naquela casa.


The Beatles, Looking Through a Glass Onion

ilustração M. Rodrigues


por Sérgio 'Cebola' Martinez

Não ha nada de novo que essas linhas possam acrescentar ao legado dos Beatles. Provavelmente pouca coisa que todos já não saibam. Mas, como dizem, o óbvio nem sempre é ululante e é sempre válido acreditar na possibilidade de alguém, em algum lugar, nesses tempos cínicos e superinformados, alguém ao menos, vir a pensar lá com seus botões inflados de megabytes poderosos: Poxa, tanto assim?! É nesta fé que venho aqui, antes tarde do que mais tarde ainda, me arriscar no labirinto de sonhos desta terra de lugar nenhum, naquele canto congelado do tempo que começou em Liverpool com quatro carinhas viciados em rock'n'roll.

Foi Bob Dylan quem disse (isso em 1964!), uma frase que arrepiaria os seus fãs mais puristas na América: " Eles (os Beatles) estavam fazendo coisas que ninguém fazia". O frescor excitante das melodias, as harmonias em duas ou três vozes, os refrões ganchudos, a energia na execução instrumental, a produção de George Martin, muitos fatores simultâneos ocorriam com inteligência sutil e certa ingenuidade jovem, isso já nos primeiros discos. Os dois primeiros álbuns, PleasePlease Me (03/1963) e With the Beatles (12/1963), já revelavam uma auto suficiência quase arrogante para uma banda iniciante daqueles tempos. Mais da metade das canções eram de autoria da banda, o que não era comum. Só para se comparar, os primeiros discos dos Rolling Stones praticamente não possuíam faixas próprias, o que era a prática corriqueira. Não só isso, boa parte dessas canções tornaram-se clássicos atemporais, como I Saw Her Standing There, Please Please me, Love Me Do, I Wanna Hold Your Hand, e muito mais. Os ingleses tomarama América com um furor nunca igualado. Acima de qualquer explicação sócio-cultural, a qualidade/quantidade de canções da usina Lennon/McCartney falava por si só, influenciando artistas pop em todosos cantos do planeta. Alguém, ok, um pouco exageradamente falou na época que compor da forma como compunham, sem conhecimento teórico de música, equivaleria a uma pessoa que nunca estudou física, montar a bomba H. Mas o melhor ainda estava por vir.

Foi em Rubber Soul (12/1965) que as mudanças sutis que já seprenunciavam em A Hard Day´s Night e Help, se concretizaram. As canções ganhavam em complexidade sem perder a urgência característicada primeira fase. As letras se aprofundam, a técnica se aprimora em todos os sentidos, cada canção, um universo em si mesma. A agressividade de Drive My Car, a beleza nostálgica de In My Life, as sublimes harmonias vocais em Nowhere Man, este disco foi, de certa forma, o responsável por Pet Sounds, álbum seminal dos Beach Boys (onde Brian Wilson, como queiram), e isso é mais do que o necessário para exemplificar sua importância. Daí veio Revolver, e o mundo rock nunca mais foi o mesmo.

Qual a importância de um disco que escancarou o formato canção pop? Que incorporou com maestria violinos, violoncelos, violas, tablas, fitas ao contrário, efeitos sonoros, solos de guitarra invertidos,vozes etéreas...? Que falava de maconha, descrevia viagens de ácido, citava o Livro dos Mortos do Tibet, dava vazão à crítica social, submarinos amarelos e amores perdidos? Que possui duas das melhores canções psicodélicas da história (She Said She Said e Tomorrow NeverKnows)? Que, definitivamente criou e ao mesmo tempo já ultrapassou, em uma tresloucada agonia criativa, a psicodelia?? Qual a importância de Revolver??? Simplesmente desligue sua mente, relaxe e flutue na corrente...

HEY, WAKE UP, depois veio Sgt. Pepper´s Lonely Hearts Club Band!!

As experiências de Revolver levadas às últimas conseqüências, Sgt.Pepper´s é considerado por muitos a obra máxima da história da música pop. George Martim, o produtor, o "quinto Beatle", conseguira traduzirem sons todas as visões oníricas da banda. Primeiro álbum conceitualda história, Sgt. Peppers é um disco pra ser ouvido por inteiro. As canções se interligam em uma sinfonia pop psicodélica antecipando as experiências posteriores de Pete Townsend na ópera rock Tommy e até o rock progressivo dos anos 70.

Pra não me alongar muito, sugiro a leitura do livro Paz, Amor e Sgt.Pepper de George Martin que dá uma dissecada legal em todo o processo de produção do disco mais importante da cultura pop. Ainda na cola da psicodelia os Fab Four ainda geraram dois discos/filmes importantíssimos para a compreensão deste período da cultura sixties, Yellow Submarine, trilha da fantástica animação de mesmo nome e Magical Mystery Tour, também trilha sonora.

White Album, Álbum Branco, ou simplesmente, The Beatles, é o disco de 1968. Como sugere o título, deixa pra trás a psicodelia, o colorido hippie, as viagens ácidas para, como muitas outras bandas neste ano, voltar ao básico. Não tanto, é verdade, afinal, Revolution #9 é tudomenos básica. Na verdade nem se trata de uma canção. É mais uma colagem de sons e efeitos sonoros que sugere um pesadelo recorrente, onde uma insistente number 9, number 9, é repetido, pontuando a estrutura da peça. E pra quem, simploriamente, ainda acha que Paul era o cara comportado e John o visceral, fique sabendo que é dele, Paul, o esporro sônico, avô do grunge, segundo Jack Endino, pai do hard rock, antecipação da brutalidade em forma de canção, Helter Skelter. Álbum duplo, The Beatles, meu predileto, se me permitem, atira em tantas direções quanto possível, e sempre acerta o alvo. Eric Clapton toca em While My Guitar Gently Weeps, de George, talvez a melhor dele, John canta o hino dos insones, I´m So Tired, Paul escancara sua influência black 'n'blues em Why Don´t We Do It In The Road, que é, segundo teoria abalizada do Brother Nei Bahia, um apelo ao retorno à estrada, abandonada pelos Beatles desde 1966. Revolution ganha uma versão mais arrastada, com vocalizações doowop e o mundo ganha um baú repleto decanções pra todos os gostos, pronto pra ser saqueado sem dó nem piedade. Aproveitem, tá tudo lá.

Lançado após Abbey Road mas gravado antes, Let It Be acabou não ficando tão bom quanto poderia ter sido. Ouvindo sua reedição recente, sem a pós-produção de Phil Spector, o cara do wall of sound,chegamos mais próximo, ironicamente, do que parecia ser a idéia original de John e Paul para o disco, uma volta às raízes, um disco mais crú, mais básico, tanto que o projeto inicialmente chamava-se Get Back, que acabou sendo o título da música que fecha o lado b (sorry,era vinil), rock n´roll puro, com Billy Preston no órgão. Só esta, mais Let it Be e Across the Universe já bastavam pra justificar a existência de qualquer banda hoje em dia, quanto mais um disco. Lançado em maio de 1970, muita gente acredita ser este o canto do cisne dos Beatles, mas o melhor ficou pro fim.

O último trabalho produzido pela banda é aquele da famosa capa dos quatro atravessando a rua, que está cheio de "referências" à suposta morte de Paul, o morto mais vivo da história. Mas essa é uma historinha paralela que merece até um post. Abbey Road é perfeito. O que o Sir Paul McCartney aprontou naquele lado b não é brincadeira não. Depois da abertura com Here Comes The Sun, fantástica composição de George Harrison, Because inicia uma viagem deliciosa onde as canções são mais uma vez interligadas (como em Sgt Peppers) em uma montanha russa de sons e texturas, inesquecíveis melodias, harmonizações vocais à Beach Boys, e até um solo de bateria. O lado A é mais tradicional, mas tradição com o selo Lennon/Mccartney de qualidade. Destaque para Come Together, coverizado pelo Aerosmithanos depois, Oh! Darling e a alucinada I Want You (She´s So Heavy). Nesta música toda a letra se resume ao título, e seu final é no mínimo, inusitado. A melodia original vai se afundando sob uma rajada contínua e cada vez mais alta de um ruído que aos poucos vai"engolindo" a canção que acaba de repente, como se alguém tivesse tropeçado na tomada e "desligado" o gravador. Ruído sobre melodia? Alguém por aí pensou em Sonic Youth? Ou Jesus And Mary Chain?? Tudo bem, velhinho. O disco acaba, profeticamente (o fim estava próximo, lembrem-se), com uma canção chamada The End: "E no fim, o amor que você ganha é igual ao amor que você faz", perfeito, não? Depois de 18 segundos de silêncio entra uma vinhetinha, Her Majesty, mas não está nem creditada na capa do disco...Primeira faixa bônus da história? Mas até isso??

Bom, acho que já me alonguei demais, mesmo não achando o suficiente. Vale a pena, a título de desculpas, ressaltar que o fato de não ter me detido sobre Beatles For Sale, A Hard Day´s Night e Help!, não significa que eles não são tão bons quanto os demais. Aliás, não tenho medo de dizer que toda a discografia oficial dos Beatles, incluindo compactos, é fundamental para o entendimento do fenômeno. iPod baixar tudo, que vale a pena.

Benedito João da Silva, vulgo Nego Dito

ilustração M.Rodrigues sobre foto de M.Mendes


por Yara Vasku

Cantava baixinho o tal do Nego Dito. Talvez para nos instigar a prestar mais atenção no que ele dizia ou no som que ele fazia... Mas Itamar Assumpção também alternava a voz baixa com elementos vocais e sonoros que nos causavam surpresa e, porque não dizer, susto. Talvez a proposta era somente algo diferente, ou, quem sabe, nos tirar da acomodação musical que muitas canções da MPB nos proporcionava. E ainda proporcionam...

Itamar Assumpção é lembrado como um dos principais artistas da vanguarda musical de São Paulo, além de ser conhecido como “maldito”, principalmente porque sempre evitou perseguir o sucesso fácil e imediato. Ele nunca gostou deste rótulo. Nem quando era vivo (ele morreu de câncer no intestino em 2003), tampouco ainda hoje, sua obra era conhecida e respeitada no país tanto quanto merecia este artista singular que misturava música, poesia, vídeo, teatro, dança e muita experimentação. Um artista de MPB, mas uma MPB diferente que o coloca no rol dos “malditos” de tantos outros estilos musicais que brigam contra a mesmice, a mediocridade, o modismo.

Mas Itamar nunca se encaixou na MPB tradicional, pois misturava samba, influências da black music, da música africana e elementos pop. Tampouco era reconhecido como artista ou poeta sério, pois suas letras sempre foram irreverentes, cheias de ironia sobre o cotidiano urbano. Para completar, suas músicas ganhavam arranjos complexos e cheios de referências (muitas vezes polirrítmicas, como também gostava Arrigo Barnabé...). Música rica, mas de difícil aceitação comercial. Por outro lado, Itamar gostava de se manter no mercado independente, mesmo que nem sempre por vontade própria. Resultado: abandono da mídia que logo o rotulou de “maldito”.

Paulista da cidade de Tietê, Francisco José Itamar de Assumpção nasceu em 13 de setembro (ops!, quase no meu aniversário, dia 14) de 1949. Primeiro se lançou com sua banda Isca de Policia (em 1979), no Festival Feira da Vila (no bairro paulistano de Vila Madalena) com Nego Dito, de sua autoria. A partir daí, consagrou-se em shows no Teatro Lira Paulistana, misturando reggae, samba, rock e funk, com letras de critica e sátira social. Este local tornou-se sede da música alternativa da cidade, abrigando artistas que tinham em comum propostas criativas, mas que não recebiam a atenção da grande mídia.

O lançamento de estréia do selo próprio da Lira foi com o primeiro álbum de Itamar, “Beleléu leléu eu”, de 1980. Com este disco, Itamar recebeu o prêmio de cantor revelação pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Juntamente com este primeiro, os seguintes (também independentes) “As Próprias Custas S.A.”, de 1983, e “Sampa Midnight”, de 1986, foram relançados em CD pela Baratos Afins em 1994. Seu único LP produzido por uma grande gravadora (Continental), recebeu o irônico título “Intercontinental! Quem diria! Era só o que faltava...”, em 1988.

Em 1994 lançou a série “Bicho de sete cabeças” (três LPs também na forma de dois CDs), acompanhado pela banda Orquídeas do Brasil. Em 1996 lançou um CD com musicas de Ataulfo Alves, “Ataulfo Alves por Itamar Assumpção – Pra sempre agora”, que foi premiado como melhor do ano pela APCA. Desfez a banda Isca de Policia em 1991, mas voltou a se apresentar com seus integrantes em 1996-1997. Desde a década de 1980 tinha público fiel na Alemanha, onde se apresentava regularmente. Seu último trabalho, “Pretobrás”, de 1998, era para ser o primeiro de uma trilogia. O segundo, gravado com o percussionista Naná Vasconcelos, “Isso vai dar repercussão”, foi lançado postumamente, em 2004.

Na vida pessoal, Nego Dito era tranqüilo, humilde, simples e apaixonado pela família. Profissionalmente, Itamar foi mais do que um grande compositor. Artista obcecado pelo novo, estava sempre insatisfeito e preocupado em se aprimorar, sem deixar de lado sua admiração pela música popular brasileira. Apesar de gostar de ser conhecido apenas como um artista popular, Itamar foi (ou é?) um gênio, uma figura, um mito, aquele que mais inovou a música paulista e, assim, contribuiu para a oxigenação e a criatividade da música popular brasileira. Morreu (quase) esquecido pela mídia e pelo público, deixando vasto material musical inédito, além de dois livros infantis e outros projetos. Grande Itamar Assumpção!!!