por Miguel Cordeiro
Walter Smetak, professor da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia era uma espécie de John Cage tupiniquim que desenvolvia teorias musicais totalmente fora dos padrões estabelecidos e vivia criando instrumentos inusitados e absurdos. Dono de uma habilidade manual incomum, era capaz de construir um negócio metade violão metade panela de cozinhar e o produto final além de instrumento musical, poderia ser também uma escultura ou objeto artístico, o que demonstrava a sua aguçada percepção plástica.
Suíço de nascimento e baiano por prestação de serviços, Smetak era um artista nato, se tornou uma lenda em seu próprio tempo e seu nome atravessou as fronteiras. Vivia enfurnado em sua sala-oficina na Escola de Música e como uma espécie de Professor Pardal, estava sempre maquinando suas criações originalíssimas.
Smetak também se tornou uma lenda devido a sua própria figura física e enigmática, um cara que sempre destoava dos demais em qualquer lugar que estivesse. Forte, cabelereira lisa cheia e prateada, penteada para trás, traços faciais marcantes, quase sempre vestido de preto, óculos escuros fechadão e se locomovia pela cidade pilotando uma vistosa motocicleta preta da época da segunda guerra. Descontando os cabelos grisalhos, parecia um beatnik ou um daqueles caras da turma de motoqueiros de Marlon Brando no filme O Selvagem ou então do filme Easy Rider.
Deste modo, ele se tornou mais uma daquelas figuras folclóricas da Salvador de então e quando ele surgia naquela moto, todos o identificavam, muito embora a maioria da população nem desconfiasse que aquele era o genial Walter Smetak.
Bem no início dos anos 80, Smetak continuava igual, a mesma cabeleira cheia, agora mais curta e espetada, os óculos e as roupas escuras, a moto preta. Na época, eu e Marcelo Nova nos encontrávamos quase diariamente. Eu fazia os grafites do Faustino, o Camisa de Vênus já existia e a gente rodava pela cidade bolando estratégias, discutindo música, azarando as garotas, fazendo brainstorms e nessas voltas era comum ver Smetak e sua moto nos lugares mais inesperados. No tráfego da Avenida Sete, em Itapuã, no Canela, no Barbalho, na Ribeira e quando isso se tornou uma coisa rotineira, era sempre uma algazarra no carro.
- Olha lá o Smetak! Que figura rock´n´roll da porra!
A gente sabia que o cara era meio gênio e todo gênio é meio chato e imaginava que o cara não devia ter muita simpatia pelo rock, mas a nossa curiosidade sempre aumentava.
- O que ele pensa sobre o rock´n´ roll?
Os encontros surpresa ficaram cada vez mais constantes e um dia gritamos do carro.
- Diga aí, Smetak!
Ele acenou. Da outra vez mais uma saudação e ele retribuiu com uma buzinada. Até que numa tarde na sinaleira do Porto da Barra a moto preta de Smetak pára ao nosso lado. Ele nos reconhece, faz um sinal com a mão e de imediato eu lhe pergunto:
- Mestre Smetak, o que você acha do rock´n´roll?
Surpreso com a pergunta nos olhou com determinação e disparou sem pestanejar.
- Rock´n´roll é lixo!!
Eu e Marcelo começamos a gargalhar, repetindo mecanicamente o que ele havia dito.
- Rock´n´roll é lixo, do caralho, rock´n´roll é lixo!
E a gente concordava com a sua definição porque ele estava certíssimo. Rock´n´roll como definição de lixo, trash, é perfeito. Smetak inicialmente estranhou nossa reação, mas logo sacou a ironia das gargalhadas, deu um sorriso cúmplice percebendo que a gente estava curtindo com a cara dele e com toda aquela situação. Aí o sinal abriu, ele deu umas três sopradas potentes no acelerador da moto e saiu em alta disparada ziguezagueando na pista, a cabeleira espetada e prateada reluzindo ao sol e sumiu entre os carros.
Teóricos, acadêmicos, pesquisadores e intelectuais tradicionais geralmente não gostam de rock´n´roll. Smetak também era assim, mas ao contrário da maioria dos seus colegas, com certeza sabia o significado dele.