Anarquistas a serviço do rock´n´roll

Ilustração M. Rodrigues


por Miguel Cordeiro

Naquele tempo Salvador era sacudida pelos sons de texto forte e iconoclasta. Isto, quase sempre, levava a uma convivência com figuras de grande senso de humor e capazes de provocar situações inimagináveis.

Nilton era presença obrigatória no meio rock´n´roll local e do alto dos seus quase 1,90 m era percebido a distância. Sua conversa fácil conquistava a simpatia de todos e sempre estava disposto a ajudar, seja carregando equipamentos, divulgar shows pichando paredes e colando cartazes ou servindo de segurança. Volta e meia surgia com alguma novidade e um dia saiu distribuindo entre os amigos calças camufladas, jaquetas verde-oliva e sacolas de lona que um primo tinha surrupiado do quartel aonde servia o exército.

Dono de uma privilegiada criatividade e de um apurado senso estético, Nilton fazia adesivos alucinantes das bandas locais com papel colante Contact e desenvolveu uma técnica de fazer estampas em camisetas utilizando como molde grandes radiografias que eram artisticamente recortadas e através das quais imprimia logotipos das bandas The Jam, Sex Pistols, Clash, Bauhaus. Suas criações eram disputadas a tapa.

Nilton era um cara impossível, um estrategista genial, um anarquista a serviço do rock´n´roll. Certo dia estava no aeroporto de Salvador e lá viu Pepeu Gomes & Baby Consuelo acompanhados por Armandinho da Cor do Som e trio elétrico. Aí Nilton teve uma idéia cabulosa. Foi de guichê em guichê das empresas aéreas e numa delas obteve a informação que Pepeu & Baby iriam pegar um avião para o sul do país; Armandinho, ao que parecia, apenas teria levado o casal ao aeroporto.

Nilton, assim como a maioria dos rockers da época, nutria verdadeira ojeriza pelos artistas ripongas baianos chamando-os, pejorativamente, de “telúricos”. Pois Nilton, ninguém sabe como, arranjou uma maneira de entrar no setor de bagagens e ao encontrar o estojo da guitarra de Pepeu, o abriu e colou na frente da sua guitarra um adesivo do Camisa de Vênus, de acordo com os rockers, a banda inimiga dos “telúricos”.

Dias depois em meio a um grupo de conhecidos e com seu jeito galhofeiro, Nilton relatou a sua aventura no aeroporto descrevendo com detalhes as roupas cafonas espalhafatosas do trio de “telúricos” e encenando a suposta reação de Pepeu ao ver sua guitarra com o tal adesivo. E Nilton falava entusiasmado sob gargalhadas gerais e gritos de aprovação. Mas ele fazia questão de frisar que seu gesto foi um protesto meramente estético, ressaltando que não teve nenhum interesse em danificar a guitarra de Pepeu, na sua definição “o telúrico masculino e feminino”.

Esta sua atitude estava diretamente ligada às regras de boa parte do rock brasileiro dos anos 80 que praticava uma política de ruptura e de confronto com as nossas raízes e tradições musicais, com a MPB, com os regionalismos. De certa forma, bem diferente da postura dos roqueiros brasileiros surgidos a partir dos anos 90 que são extremamente conciliadores e conformistas.

Nilton não participava de nenhuma banda, mas era um parceiro fiel de todas elas. Com um show marcado no Teatro Vila Velha, ingressos esgotados antecipadamente e cercado em grande expectativa, o grupo baiano de punk rock Gonorréia falou aos próximos do incômodo dos copos plásticos com resíduos líquidos que eram atirados ao palco por um determinado grupinho na hora em que tocavam uma das músicas mais famosas do seu repertório, “Comer lixo todo dia”.

Nilton, que estava presente, ouviu a preocupação da banda e surgiu com uma idéia, digamos, suja. Antes do show ele e os integrantes do Gonó recolheram uma cacetada de sacos de lixo que estavam nas ruas próximas ao teatro e os colocaram atrás dos amplificadores de palco. Quando surgiram os primeiros acordes de “Comer lixo todo dia” os copos plásticos começaram a voar em direção a banda. Neste momento e sob a orientação de Nilton, os roadies do Gonó pegaram os sacos de lixo e jogaram em cima da turma que atirava os copos. E eles estavam tão hipnotizados pelo som, que dançavam e pulavam alucinadamente com as mãos para cima, e, ao perceberem aquelas coisas vindo em sua direção, instintivamente trucidavam os sacos e o lixo caía sobre suas cabeças emporcalhando todos eles. O fedor ficou impregnado em suas roupas, em seus corpos e eles, envergonhados, se viram obrigados a deixar o recinto e cair fora.

Depois do show a banda teve um enorme trabalho de limpar o chão do teatro, com a ajuda de Nilton, claro, mas em compensação os copos plásticos com resíduos líquidos de origem desconhecida nunca mais voltaram a ser atirados ao palco nas apresentações do Gonó.