Bob Dylan, traidor do movimento?

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por Márcio Martinez

Ao fim de “Ballad of a Thin Man”, aplausos. Depois, burburinho, gracejos, risadas e então berra uma alma ultrajada: “JUDAS!”. Mais aplausos em concordância ecoa pelo espaço. Mais burburinho. O jovem artista no palco, em torno de seus 25 anos, que estivera reafinando sua guitarra com os outros músicos para dar início a canção seguinte, cospe ao microfone: “I don’t believe you”... “You’re a lyar”..., vira-se para o resto da banda e rumina: “Play fucking loud!”... Em outras palavras: Dêem-lhes o inferno! Ah, e como deram! O baterista Mickey Jones começa espancando a bateria num aparente desespero desconexo para que os primeiros acordes de uma “Like a Rolling Stone” recém saída do forno explodissem os despreparados e sensíveis ouvidos de uma platéia que esperava apenas um homem e seu violão e estava ávida por canções de protesto, de trabalho, de luta pelos direitos civis, enfim... Ao contrário, recebem de Bob Dylan a apunhalada de um estilo musical comercial, ultrajante e temerário, tudo contra o que lutavam, o mercantilismo cultural imposto à arte pelas gravadoras, sedentas de lucro, longe de se preocuparem com uma moralização aplicada a um capital social em decadência. Pelo menos, essa era a visão dos “militantes”.

O terremoto de 10 graus na escala Richter que se seguiu depois pelo salão fez ruir por terra, e para baixo desta, toda esperança dos puristas de que a música que tanto amavam serviria para deflagrar uma “Revolução Branca” por muitos idealizada, a guerrilha social através da voz e do violão que iria transformar uma sociedade alienada em uma utópica comunidade de trocas humanitárias, mais que materiais. “This Machine Kills Fascists” estava pintado no violão de Woody Guthrie já há muito tempo e essas ainda eram as palavras de ordem daqueles jovens contestadores até então. Até então...
17 de maio de 1966, Free Trade Hall, Manchester, Inglaterra. Uma data que jamais seria esquecida.

Dylan era um garoto que, como muitos, amava Woody Guthrie e Blind Willie McTell. Abraçou a folk music após conhecer Odetta e Harry Belafonte no final dos anos ’50. Então, o que teria acontecido? Uma revolução aconteceu sim, mas primeiro uma revolução interior, para depois aquela que seria visível e sentida por todos.

Mesmo antes daquele instante culminante em Manchester, da turnê pontuada entre o já lançado “Highway 61 Revisited” e o futuro lançamento de” Blonde On Blonde” na Europa, na maioria das cidades americanas por onde passava as hostilidades eram constantes, até mesmo esperadas. Em 1965, no Newport Folk Festival, músicos que o acompanhavam nas gravações de “Highway”, como Mike Bloomfield e Al Kooper, entre outros, formavam seu novo combo elétrico, já encarando animosidades e dando uma pequena mostra do que estava por vir. Depois, já tendo The Hawks (futura The Band) como banda de apoio, alternava-se entre shows e gravações em estúdio. Não parava. Estava em seu pico criativo e, naquele momento, já sabia exatamente o rumo que queria seguir, sem concessões. Então chamado “porta-voz” de sua geração, nunca se sentiu como salvaguarda de nenhum movimento, pois havia escolhido aquele caminho por uma conjunção de fatores que facilitariam sua vida para o que viria a seguir. Não que negasse suas raízes, nem poderia, mas, muito jovem, vivia absolutamente imerso no Rock’n’Roll, e com o passar do tempo percebeu o quanto essa “viagem” seria dispendiosa. Optou por se tornar um Folk Singer, afinal, era só um violão para carregar, nada que custasse muito, tipo guitarra elétrica, amplificadores, pessoas para acompanhá-lo e seus respectivos salários, essas coisas. E ainda, com as influências certas, desenvolvia e aprimorava cada vez mais sua técnica de tocar.

Havia algo de estranho no ar. Algo que prenunciava uma tragédia iminente. Prato cheio para místicos e supersticiosos de plantão. Bom, havia shows em que o público era compreensivo, aplaudia ao invés de vaiar, apoiava, ao invés de ignorar ou de cobrar postura diversa. Mas uma coisa que Dylan e banda não podiam ignorar era os locais em que passavam onde os apupos e impropérios de toda sorte eram muito intensos, muitas vezes com a turba descontente gritando e batendo palmas furiosa e ininterruptamente, durante toda apresentação do set elétrico, ocasiões em que até o som da banda se tornava quase inaudível(motivo pelo qual aquela turnê também ficou conhecida como pioneira ao transportarem os próprios equipamentos de amplificação para os locais dos shows). Foi depois de uma dessas fatídicas noites que Levon Helm declarou que estava fora. Desistiu porque não suportava mais a idéia de conflitar com os descontentes; as vaias, os gritos, os arroubos irônicos e as gargalhadas malvadas e nervosas entre as músicas, tudo isso o exauriu. Optou por ser músico, um profissional que necessitava de remuneração por seu trabalho, que amava, e para tanto buscava estar era próximo a um público que lhe desse o retorno esperado, emocional e financeiramente e não em um empreendimento àquela altura incerto até mesmo para o próprio protagonista dos eventos. Sim, porque Bob Dylan estava apostando toda sua vida artística futura naquela avassaladora turnê: Perderia toda uma legião de fãs já bastante fiéis à sua carreira de menestrel urbano? Ou ganharia novos seguidores cujo descomprometimento ideológico consagraria aquela versão rocker de um Woody Guthrie topetudo de voz fanhosa?

Três diferentes bateristas depois e lá chegaram: Manchester, 17 de maio, numa das últimas apresentações da turnê. CATARSE.

O efeito moral da tragédia, a purgação, purificação, se não atingiu a todos naquele momento, para Bob deve ter sido suficiente. O artista acima do mito que já então existia. De carne e osso, com todas as necessidades, direitos e obrigações de qualquer ser humano normal. Não um super herói: Just like you and me.

Dois shows mais no Royal Albert Hall (os últimos), breves férias na Espanha, retorno aos EUA, mais trabalho com as edições dos vídeos que foram filmados. No final de julho daquele ano, quebrou o pescoço num acidente de moto, ficou cara a cara com a morte e retirou-se em reclusão total por quase dois anos. Os místicos e supersticiosos de plantão devem ter ficado em polvorosa...

Aquela sim, foi a verdadeira grande revolução da história do Rock: Orgânica, estrutural, emocional, sem necessidade de se confrontar ideologias. Pela arte. Tudo por amor a arte, pura e simplesmente. Um homem, sua guitarra e seus intrépidos companheiros de aventura, numa jornada em busca da gloriosa redenção reservada aos justos.

O resto é tentativa de golpe de Estado.