"A chama não pode se apagar" *

foto Bahia Rock

Messias, brincando de deus

Especial Clash City Rockers . Rock Soteropolitano Anos 90

por Ricardo Cury

* Frase de Cláudio "Escória" Moreira para Messias ao saber do incêndio que reduziu a pó o estúdio da brincando de deus.

Num inicio de tarde de um dia qualquer de 1999, Quinho, então baterista da brincando de deus, me liga e diz:

- Man, o estúdio pegou fogo.
- Hein?!
- O estúdio pegou fogo.
- Que estúdio, rapaz?
- O da banda.
- Que banda porra?
- Da brincando de deus, caralho.
- Como assim?
-Pegou fogo...incêndio.
-Caraaaaalho e aí?
-Queimou tudo.
-Tudo?
-Tudo.
-Tudo?!!
-Tudo caralho. Queimou tudo. Não sobrou nada, nem minha bateria, nem o baixo de Dalmo, a guitarra de Cezar, o amplificador...

Assim começava o segundo semestre de 1999 para a brincando de deus. O saldo final foi o pó de uma bateria Tama japonesa com dois tons e dois surdos, com todas suas ferragens e pratos, de um baixo Music Man de cinco cordas, uma guitarra Ária Pró II antiga e artesanal, um amplificador Marshall e uma espécie de baú com gravações inéditas e todo material de clipagem jornalística da banda, além de tudo isso, por o estúdio ser na casa da mãe do vocalista Messias, no Bonfim, queimou também o quarto ao lado, com centenas de livros do mesmo. Sem falar no susto da mãe de Messias.

-Como foi isso rapaz?
-Porra, fui pra lá tocar bateria e esqueci o ar ligado.

O ar-condicionado do estúdio era tão velho quanto a banda, ele esquentou e daí pro fogo pegar nas paredes encarpetadas foi o tempo do início de uma música dos Ramones: 1,2,3,4.

Antes disso a banda já vinha passando por momentos de incertezas, o horizonte estava escuro para todos os integrantes, a falta de perspectiva em Salvador, o marasmo cultural e intelectual da cidade, a vida pessoal de cada um, tudo parecia ir contra a banda e agora o incêndio, que não só teve prejuízos financeiros, esse foi o de menos, o pior foi o prejuízo psicológico, quem é músico e tem um instrumento sabe do que estou falando. Shows marcados tiveram de ser cancelados, pois a banda não tinha com o que tocar.

Alguém ainda comentou: -Viu, isso que dá usar esse nome.

Paralelo a tudo isso, acontecia um projeto chamado Emergentes da Madrugada. Projeto que tinha acabado de gravar o disco "Entre" do Cascadura e estava gravando o segundo do Dead Billies "Heartfelt Sessions". O projeto era uma parceria do Governo do estado com o templo sagrado da Axé Music, os estúdios WR, que emprestava suas dependências, e com o também sagrado produtor da Axé Music, vencedor de inúmeros discos-de-ouro assinando a produção de artistas como Chiclete com Banana, Luiz Caldas e Banda Reflexus, todos estes em início de carreira, Nestor Madrid.

Um belo dia, ao acaso, em pleno Mercado do Peixe, Messias encontrou com o produtor cultural Roberto Sant´anna que estava na direção musical do Emergentes da Madrugada. Roberto falou do projeto e disse que a brincando de deus estava na lista das bandas que eles estavam pensando em gravar. Messias então contou do incêndio, o que sensibilizou o produtor. Uma semana depois a brincando de deus foi convidada a iniciar a produção do seu terceiro disco.

-Mas como vamos gravar, não temos instrumentos?

Eu era o roadie da banda e antes disso, fã. Tomei pra mim a responsabilidade de arranjar os instrumentos. Liguei pra todos os músicos que conhecia e até um show beneficente foi discutido, mas não aconteceu. Muitos músicos emprestaram seus instrumentos. Luis Fernando, então baixista de Marcio Mello, era o principal alvo, pois sabia eu que ele tinha uns 4 baixos em casa. O problema era que o baixo que Dalmo queria usar era o mesmo que Luiz fernando usava nas sextas feiras com Marcio Mello no bar Alambique e como o nome do projeto diz, as gravações só aconteciam nas madrugadas, hora disponibilizada pelo estúdio. Assim, durante as gravações dos baixos, todas as sextas eu ia pra porta do Alambique ("baby eu não sei porque, toda sexta feira eu tenho que beber") esperar MM acabar pra poder levar o baixo de LF. Sexta feira, as gravações só começavam às 3:30 da manhã. Durante os outros dias era religiosamente de meia noite às seis da manhã.

Eu emprestei a bateria e mais uma galera emprestou as guitarras e violões, cujo o nome de todos estão creditados no encarte do disco. Ao invés de ter "brincando de deus usa guitarras Gibson, baixo Fender, baterias Premier..." tinha "brincando de deus usa guitarras de Daniel, Candido...baixo de Pedro, LF..." e por aí vai.

O primeiro dia de gravação não aconteceu. O estúdio dessa vez pegou água. Choveu tanto na cidade que faltou luz, as gravações começariam no dia seguinte. O projeto tinha um cronograma que devia ser milimetricamente respeitado. As baterias tinham que ser gravadas em duas semanas. No último dia de bateria, às 5:45 da manhã, ainda faltava uma música.

- Bora, grava logo, o taxímetro ta rodando.- dizia alguém.

Com essa pressão, Quinho não conseguiu gravar direito, a música sempre saia rápida demais e o tempo tinha se esgotado. A música ficou de fora. Ironicamente a musica se chamava Two Weeks From Here, que está registrada do segundo disco da banda, o ao vivo Running live on your mind: official bootleg.

Durante todo o tempo, Nestor Madrid e brincando de deus foram se conhecendo. As madrugadas eram entre paredes recheadas de discos-de-ouro e histórias obscuras da Axé Music, contadas por Nestor.

No meio disso tudo, os Dead Billies começavam a mixar o recém gravado disco, porém, a mixagem era feita no estúdio de cima e também por Nestor Madrid, que tinha que ficar subindo e descendo as escadas da WR.

-Nestor, cuidado pra você não se confundir e nosso disco não sair meio rockabilly, hein? dizia Messias.
-E cuidado pro nosso não sair meio triste, hein?
brincava Glauber.

Lembro de muitas vezes a gente ficar na porta do estúdio esperando alguns artistas acabarem. Um dia estávamos lá esperando, quando de repente saiu Ricardo Chaves. (Um é pouco). Todo mundo ficou se olhando, meio que querendo rir. Mas logo depois saiu Luiz Caldas, que em 1999 não estava como hoje, estava no completo ostracismo. (Dois é bom!). E não parou por aí, pois logo depois sai do estúdio Netinho. Aí era demais! Imagine os três juntos, na mesma sala...Todo mundo começou a rir.

Tivemos que trocar as vibrações do estúdio pra conseguir gravar. Messias sempre que chegava no estúdio fechava a porta, olhava pra gente e dizia: - Tô cheio de idéia.

Uma dessas idéias foi chamar todos os amigos pra fazer um coral na música "Mvsica", uma quase balada. Foram convidadas mais de 50 pessoas. Entre cervejas e outras bebidas, amigos, músicos de outras bandas e gente que nunca cantou na vida ficaram juntas num estúdio cantando Lala..lala...lala lala...lala lala...laaaaaa.

Alguns levavam a sério. Lembro de Fábio Cascadura tentar ensaiar o "lala lala" em diferentes tonalidades com outros que também levavam a sério. Tinha até gente que botava a mão no ouvido quando cantava dando todo um clima "We are the Word" ao coral. Por outro lado, tinha a galera dos "subtonados", que não conseguiam acertar nem uma nota. Não ficou um coral "gospel", mas ta lá. Baixinho, mas ta. Devidamente creditado no encarte como "Coro do rock".

E foi nesse clima que a banda gravou o homônimo terceiro disco. De uma hora pra outra, como uma música do Sonic Youth, tudo que estava amargo ficou doce. Atéuma matéria pro Fantástico com Maurício Kubrusly para o quadro Me Leva Brasil a banda gravou.

- Li sobre a banda e me interessei.- disse ele se referindo ao incêndio e a história do quase seminarista e roqueiro, Messias. E assim foi durante seis meses ininterruptos, incluindo a mixagem.

E em todos esses dias ficamos na companhia do porteiro da WR, que por outra ironia do destino se chama Roque. Ta lá até hoje. -É Roque mesmo?- perguntava eu. - Oxe, é Roque de verdade- dizia ele que abria todos os dias os portões da WR para a brincando de deus, Dead Billies e Dr.Cascadura.

Era o Roque comandando o Templo do Axé.