Grafite em Bristol, por Banksy
por Marcos Rodrigues
Os que circulam pelas ruas de Salvador com certeza já notaram a proliferação de paredes pintadas com grafismos coloridos, ora fazendo o papel de educação ambiental ora enaltecendo a cultura folclórica baiana ora fazendo propaganda de eventos apoiados pelo governo, como a recente Fórmula Renault. Em quase todos os casos a 'logo' da Prefeitura Municipal vem adjacente co-assinando a 'intervenção' com o slogan: Prefeitura de participação popular. Corta.
Salvador segue sendo uma cidade muito peculiar, sobretudo no que diz respeito às trajetórias das chamadas manifestações populares. De blocos carnavalescos a alguns grupos de rap, dos ritmos eletrônicos de teclados japoneses fazendo base para o 'arrocha' aos grafismos nos muros da cidade. Onde em outras cidades as expressões dos subjugados socialmente criam tensões e forçam avanços nas correlações de força, na capital baiana uma 'cultura' de 'incorporação das diferenças' - promovida pelo campo do poder - apara arestas, arrefece ânimos e estabelece consensos.
Assim, temos por aqui líderes de blocos populares apoiando candidatos da situação, 'raps' como jingle de campanha política pela releição e, mais recentemente, servidores públicos 'grafiteiros' com carteira assinada ganhando salário, tickets e trabalhando cinco horas por dia. Para muitos são avanços incontestáveis, já que na verdade o que se deseja não é ser o 'outro', à margem, mas sim ter a inclusão na sociedade tal com ela é. Parece o paraíso da inclusão social, mas pelos números e indicadores sociais que são constantemente ventilados, pela imprensa que foge às amarras do poder local, está difícil enxergar onde as mudanças estão operando para além do ganho temporário de alguns.
As cordas que durante o carnaval separam associados de simples foliões continuam apinhadas de mãos de não-inclusos, bem como a fila que se forma a partir das 10h da manhã em frente ao restaurante popular para se ter um prato de comida a R$1, bem como as sinaleiras da cidade e as vagas de estacionamento nas ruas e a multidão de ambulantes e etc etc etc
Ficando só na questão dos 'grafites', já que a totalidade do nosso quadro social continua sendo ardorosamente investigada nas cadeiras do Campus de São Lázaro, é de causar espécie até onde o avalanche do discurso politicamente correto já está fazendo vítimas. O que nasceu em maio de 68 nas ruas de Paris como meio de contestação em famosos slogans, ganhou autonomia como arte urbana nos vagões dos metrôs de Nova Iorque no início dos anos 70, se espalhou pelo mundo na urgência punk da virada dos 80 (Miguel Cordeiro em Salvador incluso) e se consolidou como parte do tripé da cultura hiphop (os outros dois são o rap e a breakdance) em cidades como Marseille, São Paulo, Cairo etc, vira na Salvador contemporânea, em colaboração com a Escola de Belas Artes da UFBa, pastiche de propaganda oficial de governo.
Mesmo que fossem, ainda que repugnável, só pelo aspecto 'decorativo', essa pintura mural (não é mais do que isso) que se espalha pela cidade carece de inventividade, originalidade e mesmo qualidades técnicas. Os traços são infantis e primários, os temas 'chapa-branca', bobinhos, não acrescentam nada à vida de ninguém, a não ser os R$400 no fim do mês para "ex-pichadores" que agora andam felizes por não correrem mais da polícia. São agora 'grafiteiros do bem'. O que a pobreza nos faz.
O grafite é comunicação de guerrilha. Tem que ser necessariamente não autorizado. Tem que ser imprevisível, tanto nos temas quanto nos locais onde se interfere. Tem que gritar e não pedir licença. Falar de amor, de ódio, de vida e de morte, fazer pensar. Trazer uma poética viva para as ruas e não a morbidez dos murais chapa-branca. Grafite tem que ser um crime. Ou não é grafite.