I Wanna Feel Alright!


Borel, Apu, Maurão, Mário Jorge e Vandinho

Ou o que você faz quando seus melhores amigos são também a melhor banda de rock da cidade?

Especial Clash City Rockers . Rock Soteropolitano Anos 90

por Franchico

A história da Úteros em Fúria em si não tem grandes mistérios. Como ainda tô com preguiça de escrever aquela biografia romanceada, organizei os fatos ano a ano (ainda que não me considere à altura de escrever o romance que essa história merece, mas tudo bem). Bom, chega de enrolação. A seguir, uma breve revisão na história da Úteros em Fúria.

1986: Evandro Vandinho Botti (guitarra) forma a Úteros em Fúria com alguns colegas do tradicional Colégio Antônio Vieira para participar das famosas Mostras de Som da escola, pequenos festivais de música para os alunos. Mauro Pithon (vocal), Maurício Braga (bateria), Rozendo Loyola (baixo) e mais um português que não lembro o nome e tocava teclado completavam a banda. O som oscilava entre o progressivo que Vandinho então idolatrava e o rock Brasil, então no auge. No repertório, músicas da Legião Urbana (Soldados), RPM (Revoluções por minuto) e algumas próprias, com letra em português.

1988: Após diversas formações flutuantes e com uma média de dois shows por ano (sempre no palco da escola), Vandinho chama o amigo de veraneio em Villas do Atlântico, Emerson Borel, para tocar guitarra. Evandro passa para o baixo. Emerson traz novas composições e suas influências de metal, Led Zeppelin e Rolling Stones para o grupo. As letras passam a ser escritas em inglês.

1989: As influências de Rolling Stones, Led Zeppelin, Aerosmith e cia se intensificam com a entrada de Luís Fernando Apú Tude (primo de Rozendo Loyola, também da galera de Villas) na segunda guitarra, violão de 12 cordas (bastante utilizado na época pela banda) e gaita. Mauro dá um tempo para estudar para o vestibular e passa esse ano fora da banda. Um cara chamado Bacelar, com uma performance de palco similar à de Cazuza (!!) e gogó pouco privilegiado, tapa o buraco.

1990: Não lembro direito, acho que não aconteceu nada de significativo nesse ano, além de Borel e Vandinho afinando a parceria nas composições. Bacelar vai estudar medicina e Mauro retorna ao seu posto.

1991: Todo mundo fora da escola, é hora de partir pro circuito de bares da cidade. Repertório para isso já havia. Mas não havia mais baterista, contudo: Maurício Braga resolvera sair, não lembro o motivo por que. Após alguns meses em busca de um batera novo, amigos em comum apresentam Mário Jorge à banda. Pronto, está completa a formação clássica da Úteros em Fúria: Mauro Pithon (vocal), Evandro Botti (baixo), Emerson Borel (guitarra solo), Luís Fernando Apú Tude (guitarra base e gaita) e Mário Jorge (bateria). Após uma apresentação de despedida da escola no palco do Vieira, em julho, rola o primeiro show da banda na night da cidade, na lendária casa Mata Hari, no Rio Vermelho. Ali, a mágica acontece. A despeito de todas as limitações técnicas dos músicos, da falta de experiência e sabe-se lá o quê mais, aqueles shows inauguraram os anos 90 no rock baiano. A mistura de Red Hot Chilli Peppers (então no auge criativo, com o Bloodsugarsexmagic estourado) com Aerosmith, aliada ao carisma natural da banda no palco e à vibe paquidérmica de diversão emanada nas apresentações conquistam todos os que cruzam o caminho da banda. No fim do ano, a cantora Sarajane, remanescente dos primórdios da axé music, comparece à um dos shows no Mata Hari. Ela e Apú começam a namorar. A influência de Sarajane teria papel fundamental na profissionalização da banda.

1992: A cada apresentação, aumentava o burburinho na cidade sobre a Úteros em Fúria. Músicas como Queenie, You just follow all the rules, I'm bad, Be bigger, I wanna feel alright e One more time sacudiam o público como um liquidificador, ninguém ficava impune. Era um show sem tempos mortos, e até mesmo nas duas baladinhas, Sister moonlight e Inside the beer bottle, a galera pulava, agitava e se esgoelava. Em abril, lotam o Zouk Santana, então o melhor palco da cidade para músicos em ascensão ou do circuito alternativo. A ocasião é memorável. A cena da cidade, então esfacelada e estagnada, ganha uma banda agregadora, que atraía punks, metaleiros, surfistas, playboys, remanescentes da cena dos anos 80, universitários, rockers tradicionais, gente normal e outros bichos esquisitos, tornando cada show uma celebração descontrolada, à base de muito grito e participação por parte da platéia. (Que o diga Cláudio Esc, que adorava subir no palco para colocar Emerson ou Mauro nos ombros, como Brian Johnson fazia com Angus Young no AC/DC). Outro fato extremamente relevante que não deve ser esquecido é que foi nas apresentações da Úteros que a mulherada começou a comparecer nos shows de rock das bandas locais. Até o advento dos irmãos uterinos, show de rock local era uma tristeza. As únicas mulheres presentes eram as namoradas dos músicos (geralmente de cara amarrada) e eventuais garçonetes. Não sei exatamente as razões dessa atração do público feminino pela Úteros, mas suspeito de algumas razões, desde o próprio nome da banda, até o inequívoco sex appeal dos rapazes (eu estou sendo irônico!), entre outros motivos. Entre as mocinhas adolescentes que acorriam em polvorosa aos shows da Úteros, estava a jovem Pitty, que volta e meia cita o fato em entrevistas. Em julho, Apú casa-se com Sarajane. Rolam viagens para shows no Rio de Janeiro, São Paulo e Recife, onde tocam com Chico Science & Nação Zumbi. Participam da coletânea Bazar Musical SSa 1 (lançada apenas em vinil, hoje uma raridade valiosa), junto com outras bandas significativas da época, como Mutter Marie (de Ronei Jorge e Alexandre Xanxa Guena), Meio Homem (de Ruy Mascarenhas) e Kama Sutra (de Lili, do Dever de Classe), cada banda com duas faixas. As faixas da Úteros nessa coletânea são You just follow all the rules e Dear misery. Poucos meses após o disco ser lançado, Júnior, dono da loja e selo Bazar Musical e grande incentivador da cena, morre de forma trágica em um acidente de moto. Em setembro, fazem outro show antológico no primeiro evento Baú do Raul, na Concha Acústica, roubando a cena de Marcelo Nova e sua Envergadura Moral. Em1992 (e até o seu fim em 1995), nenhuma banda de rock de Salvador era tão conhecida e atraía tanta gente às suas apresentações quanto a Úteros em Fúria.

1993: Sarajane viabiliza com Wesley Rangel (Estúdio W.R., o eterno Templo do Axé) a gravação do primeiro (e também único) disco da banda. As gravações ocorrem no Carnaval daquele ano. Nestor Madrid, encarregado por Rangel pela produção, devia ter mais o que fazer naquele Carnaval, pois pouco compareceu ao estúdio, deixando o pepino nas inexperientes mãos dos músicos e do engenheiro de som Marcelão, que obviamente, tinha pouca ou nenhuma experiência em gravar rock 'n roll. O resultado foi o som pouco potente e que não captava nem de longe o peso e vibração da banda ao vivo. O som de bateria foi o mais afetado. Contudo, as músicas que levantavam o povo nos shows teriam ali seu registro definitivo. Em maio, Emerson Borel começa a dar sinais de que algo não ia bem com sua cabeça. Paranóia, medo e angústia crescentes, aliadas à um certo abuso de substâncias consideradas ilegais pela constituição, desembocaram rapidamente em um quadro de esquizofrenia aguda que estourou logo depois. Perplexos e pegos de calças curtas em um momento crítico - com disco gravado e em negociações com os selos do sul para o futuro lançamento -, a banda dá o apoio que é possível para Emerson e seus pais. Após muitos remédios e sessões de terapia, Emerson retorna às suas funções, porém, algo já havia se perdido, o trauma fora grande e nem o guitarrista (e alma da banda), nem os outros membros eram mais os mesmos. Recém recuperado, Emerson embarca à base de calmantes para o Rio de Janeiro com a banda para os shows de lançamento do disco, que acabou lançado (em vinil e CD, esgotados) pelo selo independente carioca Natasha Records, de Felipe Lerenna. No Circo Voador, a Úteros em Fúria divide o palco, com direito à jam e tudo, com Chico Science & Nação Zumbi, àquela altura, já amigos da banda. Em Salvador, o disco é lançado em um show bombástico e caótico na casa de shows Sabor da Terra, então de Chocolate da Bahia. Cerca de duas mil pessoas se acotovelam na casa, deixando mais um bom punhado de gente do lado de fora. Detalhe: não há seguranças para o show. À certa altura, era impossível ver os membros da banda, pois a quantidade de fãs enlouquecidos pulando sobre o palco é enorme. Amigos da banda e roadies tentam convencer as pessoas a sair do palco, mas é como tentar conter um furacão. Punks em estado de histeria se jogavam no chão do palco e se debatiam de forma epiléptica. Por um milagre, nenhuma briga de verdade foi registrada, ninguém saiu machucado, nenhum incidente ocorreu. Por falar em roadies, não dá para não citar aqui os competentes César Acredite (esse era uma figuraça) e Benito, que, donos de uma lealdade canina, trabalharam com a Úteros enquanto ela existiu, fizesse chuva ou sol.

1994: As crises de Emerson vêm e vão, o clima é de insegurança, e a banda se ressente do estado de nervos precário de seu guitarrista e principal compositor. Vandinho, fundador e equilíbrio emocional do grupo, foi quem mais se assustou com a situação. Em meados daquele ano, abalado com tudo o que havia acontecido, despede-se da banda em um show no Teatro Miguel Santana, no Pelourinho, onde também tocaram Mundo Livre S.A. (ainda com Otto) e Jorge Cabeleira & o Dia em que seremos todos inúteis. Para o lugar de Vandinho, é convocado o baixista Ivanzinho Maçarico, irmão de Paulinho Oliveira (que na época, arrepiava com sua banda Stone Bull, com a qual a Úteros tinha uma espécie de rivalidade amigável). Emerson ainda compõe mais umas duas ou três músicas novas (Hide my hate, a melhor delas, é bem significativa de seu estado e da própria banda em si). Os únicos registros dessas músicas inéditas estão nos shows da época gravados em VHS (e há muitos), material valiosíssimo e hoje mofando no armário de Mário Jorge, necessitando de digitalização urgente. O ano passa de forma vacilante entre shows e recaídas de Emerson, o que deixa todo mundo (família, banda, amigos) tenso com a vida naquela eterna corda bamba. Ivanzinho estréia na banda abrindo o show de lançamento do primeiro disco dos Raimundos na Concha Acústica. No final do ano, a situação de Emerson está insustentável. De comum acordo, os outros membros resolvem chamar um outro guitarrista para segurar a onda enquanto Emerson está fora de ação. Para o posto, é chamado Fernando Mercenário Sarmento, amigo de Mauro, que antes da Úteros, tocava numa banda chamada Dikara.

1995: Mercenário estréia no Carnaval daquele ano, tocando no Palco do Rock, na praia de Piatã. A despeito de seus esforços valorosos, seu estilo era muito diverso do de Emerson e seu carisma, claramente inferior. Em março (ou abril), a banda faz seu segundo e último show com Mercenário, novamente abrindo para os Raimundos na Concha. Em entrevista para o documentário Úteros em Fúria, uma videobiografia (projeto de fim de curso deste jornalista que vos escreve), concedida já no ano de 2000, Mauro relembra e admite que a banda acabou ali, por força dele. "As coisas já não eram as mesmas, as outras pessoas que entraram na banda não se encaixavam, então hoje eu até faço um mea culpa: a banda acabou ali por culpa minha, porque eu quis assim". Ninguém levantou objeções também na época. Terminava ali, de forma definitiva, a Saga Uterina Furiosa. Digo, quase: dois anos depois, em maio de 1997, houve um show de revival com a formação clássica - maravilhoso como sempre, diga-se - na casa Almanaque, na Barra. Mas foi só um show. Um coda, digamos assim, para fechar com chave de ouro, da maneira que tinha de ser.

Life after Úteros

Evandro Vandinho Botti: Quando saiu da Úteros, passou a estudar gravação no Estúdio Zero, como estagiário, além de cursar Composição e Regência na Escola de Música da UFBA (até hoje não concluído). Em 1997, abriu o próprio estabelecimento, o Estúdio em Transe. No mesmo ano, começou o projeto Guizzzmo com o ex-companheiro uterino e amigo Apú. Lançaram um disco em 2003. Apú saiu da banda no ano seguinte e a Guizzzmo acabou. Hoje, Vandinho segue carreira solo como Vandex.

Emerson Borel: Deu uma de Getúlio Vargas, saindo da vida para entrar na história do rock local. Figura trágica e genial, anjo torto de Fender vermelha em punho, atormentado pela própria mente, ainda montou a banda Black Trunk (com o discípulo Cândido, ex-Cascadura, hoje na Theatro de Séraphin), de curta trajetória. Fez parte da Guizzzmo como membro fixo e compositor, mas depois saiu. Colaborou com várias outras bandas, inclusive com a Sangria em seu iníciozinho. Vitimado por uma depressão profunda, nos deixou em junho de 2004, saindo de cena de forma abrupta e cruel, consigo mesmo e com todos aqueles que o amavam. Hoje, além de lembrança vívida na memória de todos aqueles com quem conviveu, tornou-se uma lenda do rock local.

Luís Fernadno Apú Tude: Com o fim da Úteros, chegou a tocar por pouco tempo na (hoje rediviva) Lisergia. Trabalhou alguns anos com a banda Penélope no Rio de Janeiro, operando a mesa de som nos shows, entre outras atividades. Entrou na Dinky Dau em 1997. Levou a Guizzzmo e a Dinky Dau (de Pedro Bó, Daniel Wildberger, Nélio Black e Ricardo Cury) paralelamente por uns dois ou três anos, até o fim da segunda. Dedicou-se apenas a Guizzzmo e a estudar técnicas de gravação em cursos e estagiar no Estúdio W.R., onde trabalhou alguns anos. Em 2004, iniciou a Sangria com os companheiros uterinos Mauro e Emerson. Com a depressão crescente, Emerson saiu, dando lugar para Pedro Bó (da extinta Dinky Dau).

Mauro Pithon: Após o fim da Úteros, trabalhou em diversos empregos, inclusive como roadie dos (seus chapas do Bonfim) Dead Billies e também no Estúdio Zero, gravando jingles e spots para rádio. Em fins de 2003, a necessidade de se expressar o fez montar a Sangria, banda de rock pesado e agressivo, com letras em português. A Sangria foi e continua sendo seu único projeto musical pós-Úteros.

Mário Jorge: com o fim da Úteros, logo entrou na banda Penélope, com a qual gravou três CDs (dois pela Sony e o último pela Abril Music), com algum sucesso em rádios e na MTV. Mudou-se para o Rio de Janeiro, excursionou pelo Brasil todo com a banda e ganhou muita experiência de vida, convivendo com grandes músicos e produtores, como o precocemente falecido Tom Capone (produtor dos dois primeiros discos da Penélope e marido da tecladista Constança Scofield). Saiu da Penélope em 2003 (a banda acabaria em 2004) e voltou à morar em Salvador, retomando e concluindo o curso de veterinária na UFBA, profissão que abraçou. Em janeiro de 2004, começou a apresentar o Rock Loco, um programa de rock na rádio comunitária Primavera FM. O programa, que agregou um contingente de amigos e colaboradores, durou até junho de 2005. Hoje, desenvolve um projeto solo secreto, supostamente denominado Os Opalas. Não se sabe se ele pretende montar banda, lançar o trabalho em disco ou simplesmente engaveta-lo. O tempo dirá.

Ivanzinho Maçarico: paradeiro desconhecido por este jornalista.

Fernando Mercenário Sarmento: Ao que consta, mudou-se para Nova Iorque, onde se casou e ganha a vida como professor de jiu-jitsu (!!!). Só vem à Salvador de visita.

Sim, mas afinal, o que você faz quando se tem 19 anos de idade (em 1991) e seus melhores amigos formam a melhor banda de rock da cidade? Três coisas: primeiro, você deverá colar neles mais ainda e se divertir que nem maluco, colaborando no que for possível também, claro (o primeiro release deles - péssimo! - foi meu). Segundo, fará um documentário em vídeo sobre a trajetória da banda para concluir o curso de jornalismo (de qualidade discutível e amador, mas mesmo assim, você terá orgulho dele). E em terceiro, escreverá um texto enorme para o Clash City Rockers. (Em quarto, você escreverá um livro, claro, mas isso, quem sabe, mais pra frente...).

A verdade é que, apesar de tudo - apesar principalmente da abrupta e trágica perda de um irmão -, eu não passo de um filho da puta sortudo.

Eu nunca vou poder agradecer a esses caras por terem me proporcionado os melhores, mais intensos e loucos anos da minha vida.