Mustang, mudando sempre pra melhor




por Cláudio Moreira

Em tempos de pós-rock iluminado pelos horizontes da contemporaneidade pop internacional, a banda carioca Mustang prossegue em sua trajetória independente e, sobretudo, inusitada em terras brasileiras. Nem trafegando na contramão, nem na dianteira. Apenas viajando livre e solta em seu caminho autoral, buzinando ao ultrapassar modismos de todas espécies.

Longe dos holofotes da grande mídia, o grupo plasma novos/velhos/reciclados caminhos bem resolvidos esteticamente, a fim de que o rock nacional atinja patamares de significativa qualidade artística, carregando consigo, sem soar datado e sem personalidade, a herança de tempos heróicos de bandas, como o Made in Brazil, O Peso e Patrulha do Espaço e muitas outras referências daqui e de fora. Liricamente, no entanto, a banda está muito, mas muito além, desses nomes citados. Carlos Lopes, mentor da Mustang, acertou a mão em cheio no cd "Tudo está mudando mas nem sempre pra melhor" (Monstro Discos), atingindo uma sonoridade atemporal e reunindo boas composições, além de uma produção precisa. Uma combinação de qualidades menos perceptível nos trabalhos anteriores: Oxymoro (mais intimista e eclético) e Rock´n´roll Junkfood (som garageiro tosco).

Esse cd é a prova derradeira de que é possível fazer um rock pesado adulto e inteligente, em português, de forma profunda e acessível ao mesmo tempo. Enfim, biscoito fino indicado aos ouvidos iniciantes e iniciados e disponível no mercado alternativo. É lamentável que, por falta de uma divulgação pulverizada, o "Tudo..." não tenha ainda encontrado um público abrangente. Quem sabe, um dia, vamos ver Carlos Lopes e sua trupe desfazer esse "nó" mercadológico. Porque, por mais incrível que pareça, existe muito modismo às avessas no universo rock underground no Brasil.

Se o mainstream é cruel com a liberdade criativa, é no meio alternativo em que se percebe que o reverso, necessariamente, não acontece. Visto que os artistas elevados ao panteão do pop/rock alterna são escolhidos por parâmetros pra lá de subjetivos. Assim sendo, é recorrente que se cometam injustiças seletivas nesse processo.

Com certeza, por méritos puramente artísticos, a Mustang deveria ter muito mais visibilidade junto ao público. Quem sabe, a dialética entre "música de qualidade X lógica de mercado" será ultrapassada ao som do ronco do motor rock"n"roll da Mustang cor de sangue. A lista de artistas de diversos gêneros musicais, que passam pelo mesmo tipo de vivência, é grande. Porém, a acomodação não cabe no idealismo daqueles que pretendem superar as barreiras para alcançar não o sucesso, mas a solidez de uma carreira embasada no reconhecimento.

Levante – O velho canto heavy metal acelerado, de outros tempos, ressurge, sem cerimônias, na abertura do cd "Tudo..." em "Geração Perdida". Essa música versa sobre a desilusão dos "...últimos com ideologia...que ainda pensavam...", pois eles sonhavam com a democracia. Mas como, infelizmente, constatam que, "sociólogo ou operário são faces do mesmo mal", são invadidos pela sensação de desencanto e dizem que vão "botar pra fuder!". Ao final, a letra sinaliza para uma imaginária cena futurista de caos insurrecional jacobino verde e amarelo em busca de paz, liberdade e fraternidade porque "nova Bastilha será, nova Bastilha será...em Brasília".

O amor é revisitado em tom mod na busca por respeito a dois em "Respeitar" e na falta de valores no ambiente mundano cyber em "Sexo virtual", com seu lindo som de piano a cargo do misterioso Rotieh Ortseam. Nessa música, o sorriso brota facilmente ao se ouvir que "carentes profissionais, teclando orgasmos digitais..." e que "sexo virtual é tão legal, pois mesmo feio e fedido, na internet sou o mais querido, isso é tão legal" Já "Febem" reproduz as desilusões de um fugitivo sob os auspícios da adrenalina do vocal sincopado punk´n´roll de Carlos Lopes, do groovie do baixo grandfunkiano de Wlad Vieira e da bateria arrasa quarteirão de Américo Mortágua.

Musa existencial – Carlos Lopes, resolveu fazer uma bela homenagem a Janis Joplin, que teve passagem meteórica pelo Brasil em plena ditadura militar, mas "...não bateu continência para general". Cantando naquele velho jeito tosco e emocional, ele desvenda que a branca rainha texana do blues foi esculachada e desvalorizada, deu seu ar da graça para poucos e retornou para a terra natal para, meses depois, ter uma misteriosa morte. Overdose, suicídio ou assassinato? Se o vocalista da Mustang não consegue decifrar esse mistério, ele nos lembra que Janis "veio brincar de carnaval", mas "no Rio foi feliz e não sabia". Esse rock dilacerado tem feeling ultra hard blues acelerado e cadenciado, nos acalmando ao fim porque "Janis Joplin riu da morte, ela está com Hendrix em melhor lugar".

Oriunda do repertório da outra banda de Carlos Lopes, a funkeira experimental Usina Le Blond, "Cinco contra um" migrou sem atritos estéticos para o repertório da Mustang. A letra desse pesado funk rock aborda aquele velho método masculino de busca pelo prazer estimulado pela falta da companhia ideal. Retornando a máxima sartreniana de que o inferno são mesmo os outros, a energia continua a rolar em "Inferno" e sua pegada rock lascado com guitarra faiscante estilo Angus Young misturado à ambiência sonora de um Cheap Trick.

Dada – Carlos Lopes retirou o nome da sua extinta banda, Dorsal Atlântica, seguindo o ensinamento dadaísta de transformar, pela intencionalidade vanguardista, qualquer coisa em arte. Sendo assim, abriu uma enciclopédia e enfiou o dedo em uma página qualquer e pronto. Estava escolhido o nome. Ele parece ter retomado esse caminho em "Cueca e meia", pois conseguiu transformar numa bela canção de coloração hard e prog a mais que comum temática relacionada com a chateação de receber presentes desinteressantes em aniversários.

Duas baladas integram o "Tudo...". Uma é "Sonhos", de andamento aerosmithiniano setentista e defesa lírica do mote filosófico da Mustang em não abrir mão dos sonhos, custe o que custar. Já "Despertar" emociona com seu teclado e vocais de apoio em estilo progressivo e pique hard, invocando estória de um espírito desencarnado descrente da sua passagem que tenta, sem sucesso, falar com as pessoas a sua volta sobre o tempo perdido no plano terreno.

Se alguém duvida das possibilidades de modernização do hard rock na língua de Camões, a mesma se encerra em "Rock and roll city". A singela homenagem à cidade da paulicéia desvairada e sua sanha ilógica nos lembra que "não há espaço, o ontem foi incendiado, o futuro chegou, adiantado...onde vai chegar, essa sua busca? O céu é o limite...". No solo de guitarra vem à tona todo senso melódico de Carlos Lopes sob o brilho da elegante influência do alemão Michael Schenker (Scorpions, UFO e MSG).

Último romântico – Por mais que pareça uma idéia fadada eternamente ao fracasso, todo ser humano já pensou em encontrar sua cara metade para viver o resto da vida junto ao seu lado. O personagem de "Véu e grinalda" potencializa o ideal byroniano já de enxoval comprado. Ele só não sabe em quantas prestações, "mas não faz mal, pois o que importa é enxoval". Nesse divertido devaneio rock´n´roll reside um problema para o anti-Casanova, que não quer namorar e sim casar, pois ele diz que "o único detalhe é que não te conheço, nunca falei com você...". Humor refinado não previsível recomendável para todas idades, crenças e classes sociais.

A Mustang repete no "Tudo..." a manha de fazer duas versões de uma mesma música. No caso de "Outro lugar", sua primeira versão é rock´n´roll com batida acelerada e guitarra da velha escola hard com acompanhamento de bateria em frenesi meio galopado. A segunda versão, que fecha o cd, tem letra ligeiramente diferente e deixa o country rock invadir a seara musical da banda nos remetendo a um clima de rodeio da pesada.

O rock é, na atualidade, uma linguagem universal que tanto pode ser executada nos Estados Unidos, Brasil, Japão, África, Europa ou Oceania, bastando para isso que se domine seus códigos, levando a uma espécie de determinismo histórico para quem quer fazer música direta e visceral. Isso causa a sensação de uma incômoda imposição da indústria cultural. No entanto, há um outro lado da moeda nessa realidade, pois existem artistas que vivenciam o rock na alma sem fundamentalismo, não como uma camisa-de- força estilística, mas sim como uma bússula criativa existencial rumo ao desconhecido e sublime.

Os pneus da Mustang rodam nessa estrada sem fim, de olho no que está por vir mas, pelo retrovisor, sacando o caminho percorrido. Ou seja: vivenciando o presente, de olho sempre pra frente e com respeito pelo passado. Sem vergonha de ser rock´n´roll.

O convite para a carona está feito. É pegar ou largar.