Atenção, senhores passageiros

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Fábio Cascadura, pronto pra luta de todo o dia

por Marcos Rodrigues

Ultimamente tem sido bastante comum ouvir e ler por ai que Salvador passa uma fase fértil e profissional na cena rocker. Os motivos para tal certeza nos leva invariavelmente para a performance de bandas baianas. Nunca se gravou e lançou tantos discos, nunca se lançou tantos videoclipes, nunca se teve tanta qualidade técnica e condições satisfatórias de registro, nunca tantas bandas tiveram repercussão no cenário nacional. O quadro, no entanto, para longe de nos autorizar um obaoba generalizado, merece um debate um pouco maior e uma análise menos emotiva, até para que possamos extrair o que, de fato, existe de consistente na atual cena. E talvez possamos tentar a empreitada por dois ângulos, ou melhor, por duas aproximações: uma global e outra local.

Salvador, como amostra do que acontece no Brasil inserido à fórceps na economia globalizada, ainda que empobrecida economica, politica e culturalmente, é uma cidade grande. E não necessariamente, nos dias que correm, uma grande cidade. E, como cidade grande, de quase três milhões de habitantes, não passou incólume às consequências da nova revolução tecnológica que potencializou os processos de informação e comunicação. Essa estória, como todos sabemos, ancorada diretamente na lógica do capitalismo avançado, dito global, diminuiu distâncias, acelerou a circulação de informação e, ainda que pesem consequências perversas, democratizou tecnologias. A internet é só a ponta mais visível desses tempos.

Os ventos neoliberais que chegaram no Brasil já haviam legado ao rock'n'roll nacional, no ínício dos anos 90, a possibilidade de acesso aos instrumentos importados, com a queda das alíquotas para importação. Sim, Fernando Collor. Até então, quem não tinha pai rico, montava bandas com cópias baratas de guitarras Fender e Gibson, à cargo das fábricas brasileiras Giannini e Golden, respectivamente.

A abertura do mercado nacional dessa época trouxe também a MTV e com ela o acesso à música pop do mundo para milhares de garotos. O que seria de boa parte do rock de Salvador nos 90 sem os videos do Red Hot Chilli Peppers e do Rage Against The Machine? O que antes passava pela troca frenética de fanzines em xerox entre iniciados - Spunk, Horda, Le Café Noir e outros, nas mesas do bar PABX, na Faculdade de Comunicação da UFBa, nos idos 80 - vira acesso instantâneo, ainda que filtrado, a um simples toque na tv. Até aqui, nada que Salvador tenha de particular ou mérito em relação às outras capitais do país. Essa é uma 'conquista' passiva. Em paralelo o governo ACM se consolidava e expandia para níveis astronômicos a sua trilha sonora; a axé míusique.

O avanço da tecnologia digital no campo do áudio no final dos 90 trouxe uma verdadeira revolução. O surgimento de softwares como Protools, Cakewalk e Cubase colocou nas mãos de muitos o que antes era questão de 'bens de produção' ou 'capital industrial' sob os poderes de poucos, nos dizeres do velho Marx. Os enormes estúdios de gravação migraram para a tela de um computador pessoal, logo, para o acesso de leigos e de uma garotada sedenta. O processo de registro barateou de forma abrupta, bem como as condições para se produzir tudo isso com qualidade. A outra ponta desse negócio, que é a distribuição, veio na esteira da popularização da world wide web, do aumento das bandas largas e do advento dos protocolos de compressão dos arquivos de áudio, onde o mais conhecido é o mp3. Ora, tudo isso também sabemos e as grandes gravadoras mais ainda :) Mas, onde estão mesmo os méritos de Salvador?

No âmbito local é também necessário se olhar para além do próprio mundinho. Para infelicidade geral essa última década revolucionária foi também o período que o terceiro reinado de ACM se consolidou e arrastou consigo estruturas milionárias para a música que lhe interessava. Aquela mesma que alguns estudiosos dizem que emana do povo, que não é elitista e blá blá blá. E financianda, via grupos de comunicação, produtoras de eventos e órgãos de governo, a axé míusique virou um Golem, hegemônico e exclusivista. E assim, no mesmo momento que uma cidade menos importante que Salvador - historicamente, até - como Recife, conseguia se libertar do frevo Vassourinha e fazer barulho suficiente para virar um 'selo de qualidade' na música pop e ganhar o mundo, o rock de Salvador amargava nos porões devidamente tachado de música de revoltados, amadores e incompetentes. Sem espaço nas rádios, sem um festival de expressão, sem palcos.

Onde estamos agora e o que mudou para nos autorizar a dizer que novos ventos estão soprando? Pouca coisa. Primeiro, é fato que, já há algum tempo, a música de carnaval expandida para o ano inteiro, dá sinais de exaustão. E fato, também, que isto está ligado à exaustão do império carlista. O judiciário já não é tão subserviente, o governo Lula não é exatamente um parceiro, novas lideranças emergem e esfacelam um poder centralizado etc etc etc. A explosão de faculdades privadas, ainda que sofríveis, têm mudado um pouco o perfil do baiano médio, que passa a ter contato com professores qualificados, o que leva a uma mudança no consumo de 'bens culturais'. Em que pese o xilique de uma esquerda retrógrada, a verdade é que as pressões do mercado mundial deixa o cenário cada dia mais difícil para estruturas coronelistas regionalizadas. Tudo é muito mais fruto de um movimento de fora pra dentro. Ainda assim a Cidade da Bahia acompanha tudo muito lentamente.

Por tudo que foi visto, é claro que a cidade tem mais bandas de rock gravando e circulando sua música, assim como o restante do país. Nada de mais, nada para nos rejubilar. Ao contrário. Fora as condições de registro e distribuição, estamos pior que em outras épocas e continuamos piores do que muitas cidades do nordeste. Os espaços em Salvador continuam fechando; nosso rock'n'roll está restrito a uns poucos horários nas rádios; temos uma única loja, combatente mas cambaleante, para escoar a produção pop alternativa; as bandas locais, na melhor das hipóteses, atraem, sozinhas, um público de 400 pessoas (e isso é comemorado). Isso numa cidade que tem Cascadura e Ronei Jorge & Os Ladrões de Bicicleta. Citar a cena de metal não ajuda em nada porque essa é, sabidamente, um mundo à parte em todo o planeta. E, para completar, a crítica musical 'alternativa' por aqui é, com raras exceções, a cara da cidade hegemônica; aquela que afaga os amigos e que não tem nenhuma consistência de análise.

Todo o mérito para as bandas que têm furado o bloqueio e conseguido com as condições atuais se projetar para fora da cidade, ainda que, pelo modelo independente, poucos tenham ido longe. Esperamos o Cascadura, esse mês com cd encartado na revista Outra Coisa. Mas ai é, mais do que nunca, se inserir no mundo e Salvador vira só uma pequena incubadora. Ao final, a saida para o rock de Salvador ainda está longe de ser outra: o aeroporto.