The Smiths, The Queen Is Dead



por Marcos Rodrigues



Em tempos de invenção de clássicos, fiquemos com quem realmente fez história. Antes que mentiras contadas por diversas vezes tornem-se verdades.


1986 foi um ano emblemático para o rock no Brasil. Na esteira do primeiro Rock In Rio (1985), uma enxurrada de informações sobre música pop chegou ao país. Ecos atrasados da new wave norteamericana, do punk e do postpunk inglês se atropelavam, juntos no mesmo caldeirão das diversas vertentes do rock britânico contemporâneo àquela segunda metade dos anos 80. Anorak, shoegaze, noise, suedehead, industrial, gótico e mais as aproximações do rock com os gêneros dançantes como a house e o northern soul, que desembocou em bandas como Happy Mondays.

A nascente revista Bizz tentava processar tudo isso e, ao mesmo tempo, dar conta da explosão de bandas nacionais em Brasília, Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Curitiba. Com um grupo de jornalistas que consideravam que o verdadeiro Woodstock havia se dado num dia qualquer do verão de 77, quando os Sex Pistols tocaram na cinzenta Manchester (assistam 24h Party People, está tudo lá), a Bizz foi fundamental na difusão do moderno rock inglês nas metrópoles brasileiras. Entre muitos erros (Sigue Sigue Sputnik e congêneres) e alguns acertos, a revista ajudou a indústria fonográfica aportar bem por aqui uma banda fundamental: The Smiths.

Aos que não conhecem e aos que já ouviram falar mas torceram o bico e perderam a chance de conhecer corretamente a última banda original, The Smiths mereceram todo o hype que tiveram. O tempo só comprovou a magia que foi o encontro da poesia ácida e os vocais de Steven Patrick Morrisey, com a guitarra de dedilhados celestiais de Johnny Marr. A banda continua inimitável.

De onde saiu aquele som? Quem os precedeu? Um quê do rock dos anos 50, desconstruido e reprocessado, na linha angulosa do baixo de Andy Rourke? Algo do pop dos 60 nas batidas econômicas e precisas de Mike Joyce? A herança do som de Manchester não era suficiente. Por mais que o punk processado pela velha cidade industrial tenha nos legado o Buzzcocks e o Magazine e, aqui e ali, se perceba a velha raiva britânica nos Smiths, o som ia além. Morrisey, um tenor exigente munido de belos falsetes, era presidente de um fã clube devotado ao New York Dolls. Mas a resposta também não chega por ai. Como uma banda das ilhas britânicas, trinta anos depois que Rock Around The Clock havia sido gravada, ainda poderia criar uma sonoridade absolutamente nova? E mais do que isso; fascinante. A letra de How Soon is Now pode explicar um pouco "I am the son and the heir of a shyness that is criminally vulgar / i'm the son and heir of nothing in particular (...)". Completava a aura da banda, a aversão por videoclips e entrevistas; a sexualidade ambígua de Morrissey (ele se declarava celibatário) e uma concepção gráfica espartana para a capas, que privilegiavam o rosto humano, em nuances monocromáticas.

James Dean, Oscar Wilde, The New York Dolls e estrelas femininas dos anos 60 compunham o universo desencantado de Morrisey. Johnny Marr era o fiel escudeiro que embalava tudo isso em delicados fraseados. Uma guitarra semiacústica, alguns delays, distorções discretas e certeiras. E era isso.

A banda, que surgiu em 84, com alguns singles que deixaram a Inglaterra intrigada, lançou uma sequência de petardos em vinil pelo selo independente Rough Trade; todos absolutamente indispensáveis. Ainda que seja difícil destacar um só álbum na curta carreira dos Smiths, impossível mesmo é passar ao largo de "The Queen is Dead". O disco é mutas vezes descrito, em diversas listas, como 'o melhor de todos os tempos'. Exagero? Bom, digamos que o álbum tem outros concorrentes à altura. Mas definitivamente ali está um daqueles momentos em que o rock consegue ser sublime. Em que criadores se superam e fazem história. Canções como Bigmouth Strikes Again, com sua mítica introdução; There's a light That Never Goes Out; Cemetry Gates; Some girls are bigger than others; I Know it's over e a 'blockbuster' The boy in the thorn in his side são clássicos incontestes. Estão ai, fazem parte do patrimônio da música pop do mundo. Soam atuais, soam eternas.