Distorções em nanquim: ligações entre os quadrinhos e o rock

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Robert Crumb enxerga o futuro

por Fernando Ribeiro

Falar simplesmente de música não diz tudo quando o assunto é rock and roll. Todo o gênero se mostra mais consistente quando contextualizado como parte da contra-cultura. Dentre os companheiros de trincheira do rock (e este são muitos) destacam-se as Histórias em Quadrinhos. Sempre prontas a desafiar o status quo com a mesma rebeldia e força.

No início do pós-guerra, além da euforia que toma os países que saíram vitoriosos do confronto, uma paranóia nacionalista começa a se instaurar nos Estados Unidos da América. Paranóia esta que, liderada pelo senador Joseph McCarthy, culmina na criação do Comitê Contra Atividades Antiamericanas (caça as bruxas 1950 - 1958). Um dos seguidores do senador, o psiquiatra Fredric Wertham, publica uma série de artigos acusando as HQs de promoverem a "mutilação psicológica das crianças". Encontrando solo propício para o crescimento de suas idéias, o ultraconservadorismo em vigor aponta um dedo inquisidor sobre os quadrinhos. Até um sub-comitê é criado no senado para investigar o assunto. A partir deste momento a produção de quadrinhos nós EUA toma dois caminhos distintos: um grupo de editoras (preocupadas com a publicidade negativa gerada) cria um estatuto de autocensura denominado de "comics code"; por outro lado, editoras e artistas passam a ignorar e afrontar a onda reacionária de maneira explicita. Esses últimos colocam a 8° arte no âmbito da contra-cultura por princípio.

Na década de 50 destacam-se nos quadrinhos underground a trilogia de horror publicada por William Gaines e a revista "Mad" de Harvey Kurtzman. Tendo herdado de seu pai a "Educational Comics" (editora voltada a publicação de biografias de santos e personagens históricas) Gaines transformou-a na "Entretainment Comics" tendo como linha de frente as revistas " The Crypt of Terror" ( posteriormente rebatizada como "Tales from the Crypt"), The Vault of Horror" e "The Haunt of Fear" (as palavras "terror" e "horror" eram expressamente proibidas de aparecer nos títulos dos quadrinhos pelo "comics code"). Kurtzman trabalha um tempo nas HQs de terror de Gaines até, em 1954, emplacar seu projeto de quadrinhos satíricos, a revista "Mad". Embora possa parecer datada hoje em dia, a revista, que se tornou um grande sucesso editorial, era uma força de contestação numa América que tendia a se tornar intolerante. Kurtzman é dono de um traço versátil e virtuoso tendo influenciado milhares de artistas que vieram depois.

Na década de 60 a contra-cultura torna-se extremamente popular. Em 1962 a revolução sexual ganha os confins do universo com a Barbarella de Jean-Claude Forest. Em 1965 ocorre o primeiro grande festival hippie de São Francisco, "A tribute to Dr. Strange" (destaca-se a apresentação do Jefferson Airplane, uma das últimas com o baixista da formação original, Bob Harvey). O nome do evento é uma homenagem ao presonagem dos quadrinhos de Stan Lee, o paladino das artes místicas, Dr. Estranho. Dois anos depois Robert Crumb consegue imprimir cinco mil exemplares do número 1 da sua "Zap Comics" e torna-se uma celebridade do underground vendendo sua própria revista na esquina da Haight com a Ashbury. No ano seguinte desenha a capa do disco "Cheap Thrills" de sua amiga e cantora Jains Joplin. Das páginas da revista do Crumb surgiram também outros talentos, Rick Griffin e Victor Moscoso tornaram-se os principais cartazistas da psicodelia da Califórnia. O roteirista Harvey Pekar foi o pioneiro (ao lado do próprio Crumb) dos quadrinhos auto-biográficos, gênero intimamente ligado aos quadrinhos underground.

No final dos 60 estouram protestos estudantis em todo o mundo. Na França o grupo dos Situacionistas ilustra seus manifestos com paródias de quadrinhos de grande circulação. Deste movimento participaram Malcom McLaren, Vivianne Westwood e Jamie Reid (empresário, figurinista e designers dos Sex Pistols) que se tornaram mentores do movimento Punk. O próprio movimento Punk teve seu nome tirado de uma revista que misturava quadrinhos e reportagens (assumidamente inspirada em Kurtzman). É a era do "faça você mesmo", sua música , seus quadrinhos e seus zines. Na Inglaterra Alan Martin e James Hewlett (esse último desenha hoje os personagens da banda fictícia Gorillaz) criam as aventuras da "Tank Girl". Na Itália o marco inicial do Punk não é nenhum álbum ou single, mas a revista "Cannibale"(1977) que reúne artistas como Stefano Tamburini, Tanino Liberatore, Massimo Matioli, Filippo Scozzari entre outros. O desenhista Gary Panter é figura lendária da cena Punk de L.A. E Charles Burns desenhou a capa de "Brick by Brick" de Iggy Pop.

O "art rock" dos oitenta tem seu espelho nas revistas "Raw" em Nova Yorque (editada pelo renomado Art Spigelman e Françoise Mouly), a "Weirdo" na Califórnia e a "Frigidaire" na Itália. Os irmãos Hernandez, além de serem responsáveis pelo gibi underground de maior sucesso dos 80 (Love and Rockets), formaram a banda independente Nature Boy e emprestaram o nome de sua revista para a banda dos ex-Bauhaus Daniel Ash, David J e Kevin Haskins. Jaime Hernandez ainda fez a arte de uma famosa capa do "7 Year Bitch". Alan Moore escreveu Watchmen; roteiro que redefiniu os quadrinhos de super-heróis, recheado de citações de Dylan, Iggy Pop e David Bowie, entre outros; também fez parte da banda de rock "The Sinister Ducks" com direito a capa desenha pelo britânico Kevin O´Neil (A Era Metalzóica, Marshall Law e Juíz Dread) artista proibido de ser publicado nos EUA pelo "comics code" (sim, essa aberração do Macartismo perdura até os dias de hoje).

Os anos 90 marcam uma nova explosão na contra-cultura, tão forte que se chega a questionar a própria terminologia usada para o gênero (existe ainda uma contra-cultura, ou essa cresceu tanto que passou a ser um traço fundamental dentro daquilo que podemos chamar orgulhosamente de cultura?). Não é por acaso que a maior editora de quadrinhos da época (Fantagraphics Books) tem sede na Seattle do Nirvana e da Sub Pop. As ligações das HQs com o rock passam a ser inúmeras. De Courtney Love chamando Dame Darcy de deusa do gênero, Daniel Clowes tem frases de seus quadrinhos citadas em letras do R.E.M. , desenha o clipe de "I don´t wanna grow up" na versão dos Ramones bem como uma capa para o Supersuckers. Adriam Tomine reproduz os temas de solidão introspectiva correntes no rock na sua revista "optic nerve" e assina uma série de capas para o The Eels. Debbie Drechsler é uma "riot girl" dos gibis, tratando de violência, incesto e estupro na sua controversa "Nowhere".

O artista mais bem sucedido da Fantagraphics é Peter Bagge, támbem morador de Seattle. Em 1990 lança "Hate", seu personagem principal, Buddy Bradley, sempre com sua camisa da flanela (mesmo antes do estouro do que se veio a se chamar de Grunge), nunca teve um "emprego de verdade" e fala de quadrinhos e de música com adoração e niilismo semelhante ao dos personagens de Nick Hornby. No traço, Bagge bebe direto de Crumb e Kurtzman, seu texto é irônico e trata a cultura undergound com um desdém semelhante ao do mestre Crumb. "Cês vão ver os Ramones? Por quê? Vocês só estão encorajando esses idiotas a adiarem uma aposentadoria que já vai tarde!" diz Buddy um mês depois de se ver obrigado a vender todos os seus discos do Ramones para pagar o aluguel. É nesse universo de "perdedores" e esnobismo cultural onde Bagge ri de si mesmo e dos que o cercam. Questiona o meio em que opera e, ao fazê-lo, o renova.

Mas a História não para por ai. Longa vida ao rock, longa vida aos quadrinhos.