Conflito de gerações

ilustração sobre foto M.Rodrigues


por Miguel Cordeiro

Quando um filho está para nascer os pais se perdem em longas discussões sobre qual será o nome que o rebento receberá. E o que leva os pais a batizar o seu filhote com o surpreendente nome de Creedence Clearwater Revival? Pois este é o caso verídico de um pai paulista que deu este nome ao seu filho, e, este, anos depois, veio a se destacar como um craque do futebol. E quando um pai constata que o filho corre numa direção oposta àquela que o pai imaginara ao dar aquele determinado nome ao filhote? Pois não é que o craque Creedence Clearwater Revival gosta de pagode? Logo o pagode, um dos inimigos mortais do rock´n´roll, ritmo que serviu de inspiração para o seu próprio nome?!!


É o tal do conflito de gerações que quase sempre leva o filho a fazer e gostar de tudo que seja contrário ao que os pais fazem e gostam. Isto me lembra do exemplo de um amigo que se viu nesta situação. O pai cresceu ouvindo rock e guardava com todo carinho e cuidado os seus discos de vinil e seus cds, acalentando um sonho que os seus filhos tivessem ao alcance das mãos aquele acervo de preciosidades.Quando o seu primeiro filho nasceu, ele escolheu um nome e fazia questão de explicar o seu significado para os amigos, e, ao encontrá-lo numa rua da cidade, ele me falou que o nome do seu herdeiro era Joe, em homenagem a Joe Strummer, da banda The Clash. Logo imaginei o garotinho sendo ninado ao som de Guns of Brixton ou de Spanish Bombs e achava que o futuro do rock estava preservado. Mas aos poucos o conflito de gerações se estabeleceu naquela célula familiar e o nosso Joe cresceu gostando de rock, mas de um rock que o zeloso papai não tinha nenhuma afinidade.


Papai mostrava ao filhote os clássicos do T. Rex e o filhote ficava entediado, dava as costas e ia pro seu quarto ouvir o System of a down. Papai mostrava os riffs cristalinos e econômicos do mestre B.B. King mas o filhote preferia a avalanche de notas do Malmsteen. Papai apresentava o rock pesado do Foghat mas o filhote achava que aquilo era pop e caía de cabeça no Motley Crue. Papai botava para tocar The Cure, Echo & The Bunnymen, o filhote dizia que aquilo era rock de veado e ia ouvir o rock de macho de Rob Halford e seus Judas Priest. Papai apresentou o rock de Brasilia e suas roupas pretas mas o filhote aprendeu com os coleguinhas a gostar das bandas de Recife com suas roupas coloridas. Papai sentia na alma os gemidos de Otis Redding e o filhote sentia nos nervos o blá blá blá dos rappers. Papai pulava enraivecido com o Ira e o filhote pulava conformado com o hardcore melódico. Filhote apareceu com um cd do macabro Marilyn Manson e papai disse que Alice Cooper já tinha feito aquilo e filhote ficou chateado. Papai mostrou o som da poesia nordestina apocalíptica de Zé Ramalho mas um dia flagrou o filhote meio estranho, vestido numa bata branca e escutando escondido o som da poesia parnasiana do Cordel do Fogo Encantado.


Por fim, e depois de muitas brigas homéricas, papai encheu o saco de querer fazer a cabeça do filhote e decidiram ir cada um para o seu lado.Papai tomou para si todos os discos e cds da sua própria coleção e o filhote armazenou no seu computador os sons do seu universo juvenil. Às vezes, num dia iluminado e rodando de carro pela cidade os dois se encontravam, viajandões, ao som de Jimi Hendrix ou do Zeppelin mas aqueles eram momentos cada vez mais raros. E a vida seguia seu rumo.


Eis que, numa noite, a familia se preparava para um jantar de aniversário de um velho amigo da familia. Papai aproveitava o momento e ouvia um album do Crosby Stills Nash & Young. O filhote em seu quarto ouvia Marcelo D2, aumenta o volume abafando a música que papai escuta na sala. Papai dá um grito de ordem mandando baixar o som e este grita de volta dizendo a mesma coisa. Tem início uma forte discussão e mamãe intercede ordenando que os dois desliguem os seus equipamentos.


Um silêncio apreensivo toma conta do lar. Papai já está pronto e reclama do atraso da mamãe e da filhota que, indecisas, conversam sobre qual roupa devem vestir. Papai se impacienta, dá pressa à familia e pega o jornal para ler. Só notícias ruins. No caderno 2 mais uma entrevista com respostas indecifráveis do ministro Gilberto Gil, no caderno de política só falcatruas, corrupção e roubalheiras envolvendo, justamente, o governo que papai ajudou a eleger com o seu voto. Papai fica revoltado mas no seu lar não tem com quem dividir a sua indignação. Lembra que o filhote é um alienado político, alheio a realidade do país. Mamãe e filhota não ligam para isso e vivem no universo das revistas de celebridades e das novelas da televisão.


Finalmente, a familia está pronta para sair e quando o filhote surge do quarto com sua indumentária padrão - o boné virado, o tênis pé de pato, a calça arriada e uma T-shirt extra-extra-grande do Linkin Park, aquilo soou como uma provocação para o papai. Ele resmunga, reprova a roupa do filhote, reclama da calça arriada, da cueca aparecendo e diz que a roupa é ridícula. O filhote responde a altura: ridícula é a roupa do papai com aquela calça jeans apertadinha de cantor sertanejo. Foi a gota dágua. Papai ficou furioso, começa a berrar transtornado e, descontrolado, atira o seu celular contra a parede que se espatifa em mil pedaços. E começa a chorar convulsivamente. Amaldiçoa a vida familiar e escancara o abismo profundo que os separa. Mamãe desmorona e cai em prantos. Filhote volta pro seu quarto. Filhota corre e se tranca no seu quarto. A ida pro jantar de aniversário foi abortada. A familia passou dias sem trocar palavras entre si. Uma atmosfera lúgubre tomou conta daquele lar. Os equipamentos de som ficaram mudos. E, a partir daquela data, o rock´n´roll morreu naquela casa.