The Beatles, Looking Through a Glass Onion

ilustração M. Rodrigues


por Sérgio 'Cebola' Martinez

Não ha nada de novo que essas linhas possam acrescentar ao legado dos Beatles. Provavelmente pouca coisa que todos já não saibam. Mas, como dizem, o óbvio nem sempre é ululante e é sempre válido acreditar na possibilidade de alguém, em algum lugar, nesses tempos cínicos e superinformados, alguém ao menos, vir a pensar lá com seus botões inflados de megabytes poderosos: Poxa, tanto assim?! É nesta fé que venho aqui, antes tarde do que mais tarde ainda, me arriscar no labirinto de sonhos desta terra de lugar nenhum, naquele canto congelado do tempo que começou em Liverpool com quatro carinhas viciados em rock'n'roll.

Foi Bob Dylan quem disse (isso em 1964!), uma frase que arrepiaria os seus fãs mais puristas na América: " Eles (os Beatles) estavam fazendo coisas que ninguém fazia". O frescor excitante das melodias, as harmonias em duas ou três vozes, os refrões ganchudos, a energia na execução instrumental, a produção de George Martin, muitos fatores simultâneos ocorriam com inteligência sutil e certa ingenuidade jovem, isso já nos primeiros discos. Os dois primeiros álbuns, PleasePlease Me (03/1963) e With the Beatles (12/1963), já revelavam uma auto suficiência quase arrogante para uma banda iniciante daqueles tempos. Mais da metade das canções eram de autoria da banda, o que não era comum. Só para se comparar, os primeiros discos dos Rolling Stones praticamente não possuíam faixas próprias, o que era a prática corriqueira. Não só isso, boa parte dessas canções tornaram-se clássicos atemporais, como I Saw Her Standing There, Please Please me, Love Me Do, I Wanna Hold Your Hand, e muito mais. Os ingleses tomarama América com um furor nunca igualado. Acima de qualquer explicação sócio-cultural, a qualidade/quantidade de canções da usina Lennon/McCartney falava por si só, influenciando artistas pop em todosos cantos do planeta. Alguém, ok, um pouco exageradamente falou na época que compor da forma como compunham, sem conhecimento teórico de música, equivaleria a uma pessoa que nunca estudou física, montar a bomba H. Mas o melhor ainda estava por vir.

Foi em Rubber Soul (12/1965) que as mudanças sutis que já seprenunciavam em A Hard Day´s Night e Help, se concretizaram. As canções ganhavam em complexidade sem perder a urgência característicada primeira fase. As letras se aprofundam, a técnica se aprimora em todos os sentidos, cada canção, um universo em si mesma. A agressividade de Drive My Car, a beleza nostálgica de In My Life, as sublimes harmonias vocais em Nowhere Man, este disco foi, de certa forma, o responsável por Pet Sounds, álbum seminal dos Beach Boys (onde Brian Wilson, como queiram), e isso é mais do que o necessário para exemplificar sua importância. Daí veio Revolver, e o mundo rock nunca mais foi o mesmo.

Qual a importância de um disco que escancarou o formato canção pop? Que incorporou com maestria violinos, violoncelos, violas, tablas, fitas ao contrário, efeitos sonoros, solos de guitarra invertidos,vozes etéreas...? Que falava de maconha, descrevia viagens de ácido, citava o Livro dos Mortos do Tibet, dava vazão à crítica social, submarinos amarelos e amores perdidos? Que possui duas das melhores canções psicodélicas da história (She Said She Said e Tomorrow NeverKnows)? Que, definitivamente criou e ao mesmo tempo já ultrapassou, em uma tresloucada agonia criativa, a psicodelia?? Qual a importância de Revolver??? Simplesmente desligue sua mente, relaxe e flutue na corrente...

HEY, WAKE UP, depois veio Sgt. Pepper´s Lonely Hearts Club Band!!

As experiências de Revolver levadas às últimas conseqüências, Sgt.Pepper´s é considerado por muitos a obra máxima da história da música pop. George Martim, o produtor, o "quinto Beatle", conseguira traduzirem sons todas as visões oníricas da banda. Primeiro álbum conceitualda história, Sgt. Peppers é um disco pra ser ouvido por inteiro. As canções se interligam em uma sinfonia pop psicodélica antecipando as experiências posteriores de Pete Townsend na ópera rock Tommy e até o rock progressivo dos anos 70.

Pra não me alongar muito, sugiro a leitura do livro Paz, Amor e Sgt.Pepper de George Martin que dá uma dissecada legal em todo o processo de produção do disco mais importante da cultura pop. Ainda na cola da psicodelia os Fab Four ainda geraram dois discos/filmes importantíssimos para a compreensão deste período da cultura sixties, Yellow Submarine, trilha da fantástica animação de mesmo nome e Magical Mystery Tour, também trilha sonora.

White Album, Álbum Branco, ou simplesmente, The Beatles, é o disco de 1968. Como sugere o título, deixa pra trás a psicodelia, o colorido hippie, as viagens ácidas para, como muitas outras bandas neste ano, voltar ao básico. Não tanto, é verdade, afinal, Revolution #9 é tudomenos básica. Na verdade nem se trata de uma canção. É mais uma colagem de sons e efeitos sonoros que sugere um pesadelo recorrente, onde uma insistente number 9, number 9, é repetido, pontuando a estrutura da peça. E pra quem, simploriamente, ainda acha que Paul era o cara comportado e John o visceral, fique sabendo que é dele, Paul, o esporro sônico, avô do grunge, segundo Jack Endino, pai do hard rock, antecipação da brutalidade em forma de canção, Helter Skelter. Álbum duplo, The Beatles, meu predileto, se me permitem, atira em tantas direções quanto possível, e sempre acerta o alvo. Eric Clapton toca em While My Guitar Gently Weeps, de George, talvez a melhor dele, John canta o hino dos insones, I´m So Tired, Paul escancara sua influência black 'n'blues em Why Don´t We Do It In The Road, que é, segundo teoria abalizada do Brother Nei Bahia, um apelo ao retorno à estrada, abandonada pelos Beatles desde 1966. Revolution ganha uma versão mais arrastada, com vocalizações doowop e o mundo ganha um baú repleto decanções pra todos os gostos, pronto pra ser saqueado sem dó nem piedade. Aproveitem, tá tudo lá.

Lançado após Abbey Road mas gravado antes, Let It Be acabou não ficando tão bom quanto poderia ter sido. Ouvindo sua reedição recente, sem a pós-produção de Phil Spector, o cara do wall of sound,chegamos mais próximo, ironicamente, do que parecia ser a idéia original de John e Paul para o disco, uma volta às raízes, um disco mais crú, mais básico, tanto que o projeto inicialmente chamava-se Get Back, que acabou sendo o título da música que fecha o lado b (sorry,era vinil), rock n´roll puro, com Billy Preston no órgão. Só esta, mais Let it Be e Across the Universe já bastavam pra justificar a existência de qualquer banda hoje em dia, quanto mais um disco. Lançado em maio de 1970, muita gente acredita ser este o canto do cisne dos Beatles, mas o melhor ficou pro fim.

O último trabalho produzido pela banda é aquele da famosa capa dos quatro atravessando a rua, que está cheio de "referências" à suposta morte de Paul, o morto mais vivo da história. Mas essa é uma historinha paralela que merece até um post. Abbey Road é perfeito. O que o Sir Paul McCartney aprontou naquele lado b não é brincadeira não. Depois da abertura com Here Comes The Sun, fantástica composição de George Harrison, Because inicia uma viagem deliciosa onde as canções são mais uma vez interligadas (como em Sgt Peppers) em uma montanha russa de sons e texturas, inesquecíveis melodias, harmonizações vocais à Beach Boys, e até um solo de bateria. O lado A é mais tradicional, mas tradição com o selo Lennon/Mccartney de qualidade. Destaque para Come Together, coverizado pelo Aerosmithanos depois, Oh! Darling e a alucinada I Want You (She´s So Heavy). Nesta música toda a letra se resume ao título, e seu final é no mínimo, inusitado. A melodia original vai se afundando sob uma rajada contínua e cada vez mais alta de um ruído que aos poucos vai"engolindo" a canção que acaba de repente, como se alguém tivesse tropeçado na tomada e "desligado" o gravador. Ruído sobre melodia? Alguém por aí pensou em Sonic Youth? Ou Jesus And Mary Chain?? Tudo bem, velhinho. O disco acaba, profeticamente (o fim estava próximo, lembrem-se), com uma canção chamada The End: "E no fim, o amor que você ganha é igual ao amor que você faz", perfeito, não? Depois de 18 segundos de silêncio entra uma vinhetinha, Her Majesty, mas não está nem creditada na capa do disco...Primeira faixa bônus da história? Mas até isso??

Bom, acho que já me alonguei demais, mesmo não achando o suficiente. Vale a pena, a título de desculpas, ressaltar que o fato de não ter me detido sobre Beatles For Sale, A Hard Day´s Night e Help!, não significa que eles não são tão bons quanto os demais. Aliás, não tenho medo de dizer que toda a discografia oficial dos Beatles, incluindo compactos, é fundamental para o entendimento do fenômeno. iPod baixar tudo, que vale a pena.