ROCKANDROLLFUCKITALL

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Raul Seixas exibia orgulhoso sua carteirinha de roqueiro

por Miguel Cordeiro

Ettore Scola, um dos mais brilhantes cineastas daquela incomparável geração de italianos que faziam cinema para contar estórias e histórias de maneira cativante e envolvente, dirigiu um filme em que ele dá a sua interpretação da trajetória da música ao longo do século 20. O nome deste filme é O Baile e nele não há diálogos, nem um sequer. Os atores, homens e mulheres estão sempre num salão de festas desfrutando de um baile sem fim que escorre através dos anos. Eles não pronunciam uma só palavra, mas dançam, gesticulam, representam vários grupos sociais que interagem, têm suas preferências enquanto uma orquestra vai executando, cronologicamente, a trilha sonora respectiva à cada época. O Baile é um filme obrigatório a todos os amantes da música, inclusive os roqueiros.

Scola parte do inicio do século passado com os bailes da belle epoque, acompanha o passar dos anos, vê a chegada de novos ritmos, de novos costumes e quando chega o momento da segunda guerra mundial (1939/1945), o salão de baile é fechado, torna-se um abrigo anti-aéreo, a música sai de cena e o que se ouve é o aterrorizante som dos alarmes e dos bombardeios.

Uma das maiores curiosidades do filme se passa exatamente após a segunda guerra. É a época das big bands ao estilo Glenn Miller e a orquestra está tocando a nossa familiar Aquarela do Brasil. Neste período o ambiente do baile, a decoração, o figurino dos atores é propositalmente apresentado dentro de uma estética 'brega' e o chacoalhar das maracas envolve o lugar. De repente, um estrondo. Uma gangue adentra o salão com um pontapé na porta, dão bicudas nos instrumentos da pomposa orquestra. Eles se vestem de preto, usam casacos de couro. A partir deste momento as guitarras impõem o ritmo do frenético rock´n´roll e os participantes do baile passam a apresentar um comportamento bem diferente daquele de antes.

Ettore Scola numa única cena explica sem palavras e com a precisão cirúrgica das imagens o que é o rock´n´roll. Está ali a aversão radical ao regionalismo, o elogio à força dionisíaca, o alinhamento ao paganismo, um pé na porta do convencionalismo careta, o desprezo ao virtuosismo masturbatório, a oposição frontal aos ritmos étnicos, a opção pela rebelião e pela incorreção política.

Queiram ou não, domesticado ou não o rock´n´roll sempre foi isso e mesmo hoje em um mundo globalizado de inegáveis avanços mas onde tudo é pasteurizado e homogênico, o verdadeiro rock ainda guarda estas características.

Mas a hipocrisia do mundo globalizado é eliminar as 'identidades' impondo a apatia e a ausência de opinião. É embaralhar as mercadorias para confundir a escolha do indivíduo pelo rótulo que mais lhe agrada. É criar falsas sentinelas da liberdade para acusar vozes dissonantes de serem patrulheiras. É se apropriar da máxima secular de que 'tudo na vida é válido' para transformá-la no conformismo do 'tudo é válido' que priva o ser humano de expor a sua opinião e de ter a opção de acertar e de errar. É destruir, acertadamente, muros de concreto ideológicos, e, erguer, equivocadamente, outros muros abstratos e invisíveis colocando em cima deles pessoas que repetem pateticamente: 'este muro é apenas mais uma coisa na vida da gente'. A hipocrisia do mundo globalizado é também criar o roqueiro que reverencia o boneco fantoche regionalista que está sentado confortavelmente no colo do manipulador ventríloquo.

Ettore Scola dá a entender que roqueiro de verdade, independente da fantasia da vestimenta, tem mesmo de marcar o seu território em um mundo sem opiniões. Raul Seixas percebeu isso na essência do rock´n´roll, e exibia com orgulho a sua carteirinha de roqueiro. Aliás, todo mundo deveria ser assim, ter uma 'carteira de identidade', mesmo que imaginária, dizendo claramente o que ele é, porque as aparências não significam mais nada, mesmo as sonoras. Assim, as coisas seriam mais fáceis e evitaríamos a perda de tempo, os subterfúgios. Saberíamos diferenciar o roqueiro que para ele 'rock é rock mesmo' daquele que estufa o peito, arrota distorção, mas assimila e incorpora, despersonalizadamente, os regionalismos. Não existe rock quando ele se mistura aos regionalismos, por mais radical que esta afirmação possa parecer. Ele deixa de ser rock e passa a ser uma outra coisa. E sem inteligência o rock´n´roll torna-se tão imbecil quanto a cultura regionalista de fácil manipulação.

Desça do muro e seja um roqueiro de carteirinha, e mesmo que seu gosto musical pessoal seja abrangente, universal e variado não misture as bolas. Rock é rock mesmo.