E Deus criou a mulher



por Márcio Martinez

Demora, mas sai. A 'Proto-Punk-Poetisa-Mor' do rock'n'roll tem dessas. Certamente ocupa esses hiatos entre lançamentos com outros afazeres igualmente produtivos, mas que são só da conta dela.


30 anos de carreira, 9 discos lançados! Isso, por si só, já é motivo para considerá-la uma verdadeira lenda viva, e das melhores, dentro do panteão sagrado deste gênero que, injustamente, ou talvez por uma questão de maior proporção, tende a conferir aos homens tal alcunha.

Trampin' é o resultado da espera por (longuíssimos!) quatro anos desde Gung Ho, de 2000. Ainda é a maior. Está tudo lá: riffs possantes, distorcidos, fúria uterina reveladora, inimitável, incomparável, mas também sensível e apaziguadora nos momentos certos, qual uma mãe solícita embalando nos braços sua assustada criança, aliviando a angustia de uma dor.

Quando resolve desplugar, uma brisa de suaves e belíssimas melodias nos carrega em instantes meditativos conscientes. Que o diga 'Trespasses' onde seu verso inicial, 'Life is designed with unfinished lines' (A vida é desenhada com linhas inacabadas) mostra que sua veia poética encontra-se em perfeita forma. 'Stride of the Mind' é um soco no estômago, guitarras em riffs circulares, bateria e baixo cadenciados, com versos rápidos, straight ahead rock'n'roll, estado bruto da matéria. 'Gandhi' é uma daquelas que resumem seu estilo reflexivo, letra meio que narrada, improvisos que se repetem dentro de um mesmo tema passeando por toda a longa faixa, início lento , tensão pelo caminho num crescendo que explode em ira justificada para depois retornar, relaxada, após esse longo gozo elétrico, à forma original e a seu fim. Tem uma mais longa ainda, 'Radio Baghdad' ('Radio Etiopia' revisitada?).

Dentro de seus tão caros temas políticos esta parece encontrar inteira liberdade num improviso de mais de doze minutos, desta vez sim, com sua letra inteira narrada, berrada, cuspida em nossos rostos frios e impotentes, como se o acúmulo de diversos horrores deste conturbado princípio de século, como o 11/09, o Afeganistão e a invasão do Iraque, tivesse feito estourar uma bolha de indignação saturada em seu cérebro e fosse motivo suficiente para quebrar seu silêncio de quatro anos. 'Peaceable Kingdom' é uma melancólica balada, que reflete em sua própria melodia a tão almejada busca pela paz, não só externa como interior quando diz no refrão, após um início nostálgico: 'Maybe one day we'll be strong enough/To build it back again/ Build a peaceable kingdom/Build it back again'.

O cd encerra sua jornada apresentando sua filha, Jesse Smith, num delicado debut ao piano, nenhum outro instrumento a mais, tocando a faixa título em comunhão com a voz morna e hipnótica da mama Patti, mostrando maturidade suficiente para assumir esse magnífico legado responsável, porém independentemente: 'Trampin', a música, é uma canção folk americana de 1931, segundo o próprio encarte uma 'Negro Spiritual', uma simples, mas profunda religiosidade embutida em seus versos repetidos quase como um mantra, só que mais lento. Novamente, aqui, a busca pela paz, nesta vida e além.

11 canções e 63 minutos de pura emoção depois, a conclusão a que se chega é que Patti Smith ainda é autoridade máxima a ser respeitada quando se busca por alguma referência neste espaço autofagista e repetitivo do rock nos dias de hoje.

Só me resta dizer: HALLELUJAH!