Entre o Abatedouro e o Inferno

foto Brinkhoff / Morgenburg (www.rbbm.de)


por Fernando Ribeiro

Nick Cave é um roqueiro de texto forte. Faz número à linhagem de Leonard Cohen, Tom Waits e do "man in black" Johnny Cash e divide com eles, como quem carrega um fardo, a missão de cantar o lado obscuro do mundo e da vida. Eu sei, colocado dessa maneira a coisa toda ganha uma aura religiosa, mas é esse o caso. Fascinado pela cultura cristã, Deus, o diabo, o pecado, a culpa e a punição são temas recorrentes e centrais nas letras que Cave faz ecoar em nossos ouvidos, carregadas por guitarras brutais ou piano e cordas suaves, tanto faz.

Sua carreira discográfica começa em 1979 na sua terra natal, a Austrália. A banda se chama Boys Next Door e lançou apenas um disco: "Door, Door". No ano seguinte mudam de nome e de continente e a emblemática The Birthday Party chega a Europa (primeiramente Inglaterra e, em 1982 passa a ter a Alemanha como base). Grava 3 discos e dura até 1983 quando o cantor australiano parte para sua carreira solo, acompanhado pelo The Bad Seeds.

Falar dessa prolífera carreira é mais do que mera digressão quando o assunto é o seu último trabalho, o disco duplo "The Abattoir Blues / The Lyre of Orpheus". O Album, que figura nas listas de melhores do ano dos principais periódicos de rock ao redor do mundo, é uma amálgama irretocável de momentos distintos da carreira desse soturno compositor.

No prefácio que escreveu para uma edição avulsa do Evangelho de São Marcos aparecem algumas pistas do que estava acontecendo na alma do Sr. Cave. Ele relata o interesse que teve pelo antigo testamento nos seus vinte e pouco anos. O Deus raivoso e vingativo ali descrito, despejando sua ira sobre a penitente humanidade condiz com sua descrença ,o interesse por literatura violenta,a fatalidade e na noção de que o mal vive próximo a superfície da existência. "Mas ai você cresce, não?! Você amolece. A compaixão começa a brotar pelas rachaduras de um solo negro e amargo. Sua raiva não precisa mais de um nome. Você não acha mais conforto em observar um Deus insano atormentando uma humanidade desgraçada quando você aprende a perdoar a si e ao mundo".

A transformação do autor se rebate em sua obra. Entre os discos "From Her to Eternity"(1984) - cuja faixa título embalou o amor de um anjo por uma trapezista no filme "Asas do Desejo" - ao sanguinário "Murder Ballads "(1996), bem como na carreira "pré Bad Seeds", vemos o jovem indignado, olhando para os céus com revolta e para a humanidade com descrença (ou vice-versa). No "The Boatman's Call"(1997) e seus sucessores as guitarras nervosas cedem lugar a um piano dramático e cordas limpas. A revolta sublimou em melancolia e beleza (com uma boa dose de compaixão), os climas tempestuosos se tornaram suaves sem perder a substância.

Em "The Abattoir Blues / The Lyre of Orpheus" as duas perspectivas se misturam. Embora o primeiro disco (The Abattoir Blues - o "Blues" do abatedouro) tenha no título uma metáfora para a visão de mundo do jovem Cave, e no segundo ( The Lyre of Orpheus - o drama grego sobre o amor que se encontra, o amor que se perde, a luta para recupera-lo - e ai se tem que descer até o inferno- e o amor que se perde mais uma vez e para sempre) trate da melancolia que habita seus últimos trabalhos, esses elementos dispares estão mesclados em todo o album.

"The Abattoir Blues" é a prova de que o garoto revoltado ainda vive, ou teve que voltar a tona (talvez em resposta a selvageria da política internacional de hoje). A saída de Blixa Bargeld dos Bad Seeds trouxe a solução inesperada de utilizar vocais em coro e elementos acústico para dar mais peso aos climas carregados ( e funciona !). Em contrapartida uma atmosfera elétrica permeia o drama do segundo disco. Músicas como "Get Ready for Love", Hiding All Away", There She Goes, My Bealtifull World", "Easy money" e "Carry me" mostram que Nick Cave, em algum lugar entre o abatedouro do mundo e o inferno dos amores perdidos, encontrou uma nova maneira de compilar suas canções; visita o passado com dignidade e brinda o futuro de sua obra com a esperança que só se pode ter com os artistas que (além da primorosa qualidade estética) não nos deixam saber ao certo o que esperar.